sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Libertando-se das Angústias


Nós criamos convenções e entramos numa espécie de jogo. E é só um jogo. Você não ficaria chateado se conseguisse olhar o SPC como parte de um jogo, “ah, me colocaram no SPC”, faz parte do jogo, “dentro dessa regra do jogo leva quanto tempo para eu sair ou o que eu preciso fazer para sair?” - só a regra do jogo. Da mesma forma no trânsito: se você descumprir as regras, passar no sinal e for multado, ou emprestar seu carro para outra pessoa que foi multada em seu nome, podem cassar sua carteira. Mas a carteira faz parte também de um jogo inventado muito tempo atrás. Inicialmente não existiam carteiras de motoristas. Inicialmente, o jogo já foi tão diferente que quando os primeiros carros foram lançados na Inglaterra, havia uma outra regra: tinha que ir um homem a cavalo na frente dizendo “vem um carro aí, vem um carro aí” (risos). 

Dessa maneira, se nós conseguirmos olhar todo o conjunto das coisas da vida dentro dessa interpretação, que são jogos criados, você se libera da angústia. É só um jogo, não tem nada, não tem nenhuma realidade subjacente, apenas a que eu acreditar que tenha. Assim como o jogador de xadrez que olha para o tabuleiro e acredita que o cavalo tem seu movimento em "L". É porque ele acredita nisso que o cavalo tem esse movimento. Se ele não acreditar, se ninguém explicar as regras para alguém, o cavalo é só uma figurinha, um cavalo, mais nada.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Os Monges


Os Monges, no tempo de Buda, estavam permanentemente andando, e apenas paravam no período das monções, no período das chuvas, durante três meses, fazendo cabanas de palha na floresta, e ficavam durante esses três meses de chuvas lá. Isso tinha sentido na Índia tropical, mas não na China. Na China não havia ambiente cultural para se mendigar, que era uma coisa muito mal vista. Então, os Monges começaram a cuidar da terra, plantar, cozinhar e então surgiu uma cozinha vegetariana nos mosteiros. A cozinha shojin ryoki, porque os monges não podiam matar, e essa regra eles não queriam descumprir, de modo que a saída foi criar uma cozinha em que não se matava.

Isso teve uma repercussão interessante, que é a tradição dos Monges de longa vida e lucidez. Essa tradição parece que surgiu do modo de vida monástico nos quais se inclui uma alimentação frugal. Mas aos monges nunca foi dito: é proibido você comer carne. A comida vegetariana era a comida do monastério, mas quando ele saia e alguém lhe oferecia comida pronta, se viesse uma carne ele não podia recusar, pois essa é a regra antiga do tempo de Buda. Então, as regras mudaram, Pai-Chang escreveu novas regras para os Monges, que são as regras monásticas do Zen até hoje. Têm por volta de 1.200 anos, ou seja, as regras mudaram no Japão por causa de imposições políticas e perseguições, os Monges foram obrigados a casar, e o resultado disso foi que nós temos um outro tipo de monasticismo, que até não poderíamos chamar de monasticismo. Dizemos “Monge” ainda por tradição, mas a palavra vem do grego monakhós, que quer dizer sozinho. Discute-se também se não deveríamos usar a palavra “reverendo”, mas temos que mudar em todos os países simultaneamente. Hoje na França é moine, em inglês é monk, nos outros lugares também é a mesma coisa. Teríamos que mudar para todas as organizações de origem japonesa essa denominação, mas o que importa é que na verdade o budismo e o monasticismo vêm se adaptando à circunstância e às próprias demandas da população.

Nós não teríamos um único Monge no Brasil se a regra fosse só poder comer se tiver mendigado. Eu teria morrido de fome muito tempo atrás, Sodô San também, porque essa regra só é possível de ser praticada onde existe essa tradição de mendicância. No Japão existe mendicância ritualizada nos monastérios, creio que fiz isso cinco vezes na minha vida. Saía com sino, tigela, como pedinte na rua. Você se veste de uma maneira tradicional para fazer isso. Pensaríamos que deve ser muito humilhante, mas no Japão não é. Se você sai vestido de Monge com a tigela na mão, um sininho, está inserido dentro de uma cultura que vê isso como honroso, e as pessoas fazem reverências para você e vêm fazer doações na sua tigela. Você recita um Sutra, agradece e continua. Em nenhum momento você se sente humilhado. Ninguém cospe em você, nem chuta, nem nada. Então, nós temos que ver todas essas coisas com um olhar da própria história, das modificações, e entender como elas ocorrem. Olhar a vida, nossa própria vida, nesse contexto.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Errado não, Diferente


Quando nós nos sentamos para fazer cerimônia de oryokis, vocês receberam instruções, então aprenderam as regras. Quando você está fazendo, você esquece de determinada instrução e: “ah, me esqueci”, e fica chateado. Alguém até pode olhar e dizer “aha, errou!”, ambos estão loucos. Alguém pode chegar para mim e dizer: “Sensei, o senhor não vê que está fazendo errado?”. É como diz Saikawa Roshi, quando alguém diz: “o senhor não viu que no ritual fulano fez assim e está fazendo errado”, ele diz: “errado não, diferente”. Diferente, é o que ele tenta ensinar. Esse conceito de errado e certo, aplicado sobre essas coisas não tem o menor sentido. Sim, as regras foram criadas para seguir e fazer o procedimento de determinada forma para que você fique atento a ela, mas se você achar que essas formas são o verdadeiro, o certo, alguma coisa transcendental que os Mestres do passado ensinaram, você está louco, porque não foi nada disso.

Eu posso chegar no próximo sesshin e dizer assim: “não vamos mais fazer isso, vamos fazer assim, diferente”. Pronto, agora o certo é o novo e o antigo, que era certo, não é mais certo. Isso é constantemente feito dentro do Zen pelos Mestres e alguns Monges ficam bravos, porque estão burlando as regras, estão modificando, mas nada é fixo. Apareceu até um movimento no Japão dos que queriam retornar à prática exatamente como era no tempo de Dogen, 800 anos atrás, que diziam: “você tem que entrar por aquela porta assim, e tem que entrar de lá, e não de cá, tem que ser de tal e tal forma, porque esta era a maneira que Dogen fez”. Só que Dogen veio da China e trouxe métodos de lá e modificou. Tettsu Gikai também modificou. No passado mais remoto ainda, lá pelo ano 800, Pai-Chang, em japonês Hyakujo, mudou as regras para os mosteiros. Se você ler as regras antigas do tempo de Buda, os Monges não cozinhavam, era vedado aos Monges fazer qualquer coisa, eles tinham que mendigar comida pronta. Se a comida não lhe fosse dada, eles não iriam comer, porque eles não podiam amanhar a terra, cultivar, plantar, colher, cozinhar, não podiam fazer nada disso. Está lá nos Sutras no tempo de Buda, no Vinaya, mas quando o budismo chegou na China e o Zen teve que ir para as montanhas, houve perseguições e os Monges tiveram que fazer sua comida senão morreriam. Aquela prática da Índia não era era possível lá.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O Jogo da Vida


Aos olhos de Buda muitas coisas que nós enxergamos na nossa vida são vistas de forma completamente diversa. Nós vamos assistir a um jogo e torcemos para um ganhador, valorizamos o que ganha e desprezamos o que perde. Mas, aos olhos de Buda, ganhadores e perdedores são absolutamente iguais: eles participam de um jogo. O jogo em si, esses ganhos e perdas, não são mais que fantasias de regras que nós criamos, uma espécie de redoma de realidade que envolve aquelas regras que nós assumimos e acreditamos, e daí elas se tornam reais. 

Você pega um tabuleiro de xadrez, você tem 64 casas, oito de cada lado, dezesseis peças. Cada peça tem um movimento diferente: as torres são diferentes dos bispos, os bispos diferentes dos cavalos, os bispos até andam no mesmo tabuleiro, mas de forma completamente diferente - alguns andam só nas casas pretas e outros só nas casas brancas. Então, eles jamais se encontram, andam em espaços diferentes, embora estejam no mesmo lugar. Nós olhamos o tabuleiro e assumimos essas regras, e assim se desenvolve um jogo. E alguns ficam tristes por perder e outros alegres por ganhar. 

Enormes discussões foram feitas, muitos livros foram escritos nos últimos séculos sobre o jogo de xadrez, que é considerado um dos mais antigos. Há um tratado espanhol de 500 anos atrás, e já é considerado um tratado do xadrez moderno. Mas o que é interessante é nós percebermos que é uma bolha de realidade. Foi criada uma bolha por causa das regras que foram assumidas pelos jogadores em cima de um tabuleiro que é todo feito de convenções. A regra dos bispos, por exemplo, é uma convenção. Uma criança que pegue um tabuleiro e não saiba as regras vai brincar com as peças completamente fora delas. 

O que nos interessa nessa analogia é que a vida é construída assim. Nós assumimos as regras do nosso sistema educacional, dos diplomas, das formaturas, chamamos as pessoas de doutor, ou de engenheiro, ou de advogado, de acordo com um determinado número de regras que ele cumpriu. Quando trabalhamos nas empresas, seguimos determinadas regras que foram estabelecidas, por exemplo, por legisladores no Congresso Nacional, e pagamos impostos seguindo essas regras, e ficamos apavorados se não conseguimos pagar uma conta, porque podemos cair na regra do SPC, e ele vai nos listar como maus pagadores, e daí outras pessoas, por causa daquela regra, não te darão crédito, e assim por diante. 

Tudo foi criado com a mesma realidade da regra do tabuleiro de xadrez. O nível de realidade é o mesmo, você assumiu convenções. A pergunta é: isto é realidade ou não? A convenção e as regras se tornaram a nova realidade que se sobrepõe à verdadeira realidade?

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A Lâmpada


Na transmissão, o Mestre ritualmente entrega ao Monge a lâmpada. Então é a história da transmissão da luz ou da transmissão da lâmpada. O Monge passa a ficar encarregado de prosseguir com aquela lâmpada, tentando levar a luz às outras pessoas, clareando o caminho. Então, ser discípulo requer uma atitude diferente da do aluno, porque as três qualidades do discípulo são: obediente, silente e não resistente. O discípulo tem que entregar seu caminho para o Mestre. Ele escolhe o Mestre e segue o caminho, mesmo que não entenda. Se o Mestre disser: "suba aquela montanha e me traga uma pedra lá do topo", ele vai lá e traz a pedra. O Mestre pega a pedra e joga dentro do rio, sem dizer nada. O discípulo não pode achar isso idiota, não pode contestar, ele tem que procurar saber o porquê disso, o que o Mestre está tentando dizer, o que ele está ensinando. Então, discípulo não questiona nada. 
Na tradição tibetana há um ditado que diz: “examine seu professor durante oito anos antes de aceitá-lo como Mestre”. Você só deve aceitar ser discípulo do seu Mestre depois de olhá-lo muito bem durante tempo suficiente para você ter a coragem de entregar seus destinos às instruções dele.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A Contestação no Zen


Já expliquei algumas vezes as virtudes do discípulo, pois em geral todas as pessoas que estão praticando são alunos. O aluno senta, ouve, discorda, tem suas próprias ideias. Com o tempo as ideias podem mudar, mas ele tem ideias naquele momento e isso é perfeitamente admissível. No tempo de Buda, as pessoas faziam perguntas capciosas ou mesmo tentavam debater com ele, e isso é legítimo no Zen, é bem estruturado e até ritualizado. Existe uma cerimônia em que você interroga o Mestre com a pergunta mais louca que você imaginar e o Mestre responde. Chama-se Mondô.

Eu já fiz essa cerimônia algumas vezes, você vem com a pergunta que você preparou, faz a pergunta se ajoelha na frente do Mestre que está em pé com kyosaku na mão, ele responde e bate em seu ombro. Então você recua de costas agradecendo. O que as pessoas tentam é colocar o Mestre num beco sem saída, e o Mestre precisa ter confiança para fazer esse tipo de cerimônia. Ela de certa maneira repete o que acontece na cerimônia de graduação do monge noviço, quando ele passa a Zagen, depois de um treinamento. O Mestre pode pedir para o Monge fazer essa cerimônia. O Monge fica sentado e diz a todos: “desafiem-me”. Então as pessoas fazem perguntas sobre o Dharma e ele tem que responder sem hesitar, sem escapar de alguma maneira fácil, e pode ser contestado, podem dizer que não gostaram da sua resposta, pedir para que explique-se melhor, etc. É um combate do Dharma e ele tradicionalmente é feito da forma em que as pessoas subam de tom até os gritos, e o Monge tem que se impor. Após essa cerimônia, ele deixa de ser um noviço e continua praticando até o próximo passo que seria, se o Mestre reconhecer nele uma realização espiritual, a transmissão.


[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Os Dogmas e os Erros



Quando se critica textos de outras tradições, temos que lembrar que os textos budistas também são assim, a única diferença é que ninguém diz que está certo porque é a palavra de Deus e quem disser alguma coisa contra a gente queima na fogueira. Isto é que salva o budismo, porque a confiabilidade dos textos é tão frágil num lugar quanto no outro.
 Por isso o Zen apareceu como um movimento que considerava poucos textos e enfatizava uma outra coisa, que tem outro perigo: o Mestre. A transmissão tem que ser de Mestre para discípulo, de coração para coração, de mente para mente, e teoricamente isso garante a pureza do ensinamento. Contudo, podemos deduzir que não garante, porque, por exemplo, eu digo isso aqui e daqui há 200 anos alguém vai dizer: “Monge Genshô que falou, e se ele que falou isso, então é a verdade" - e pronto, alguma coisa já estará distorcida. Compreendem? Há o endeusamento das pessoas, o culto à personalidade. Os erros perduram através do tempo, e eventualmente você tem um aluno que distorce o que você diz. O Zen é um ensinamento baseado na experiência, e não no texto. O mestre é um guia para a sua experiência. É isto.

[Trecho de palestra proferida por Meihô Genshô Sensei]

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Entrevista: O Zen e o Engajamento Social




5) O Dharma, desde sua origem até os dias atuais, foi se adaptando às necessidades de cada época e cada país. Ações sociais deveriam ser mais incentivadas na sangha brasileira, visto que somos de um país com problemas sociais tão complexos? Nós, praticantes brasileiros, temos uma responsabilidade ainda maior com o compromisso social em comparação com praticantes de países mais desenvolvidos?

Cada grupo de praticantes e cada pessoa escolhe sua atividade inspirada pelos ensinamentos nas Sanghas. Não é preciso um programa de incentivo. Desde que no momento em que alguém começa a descartar seu eu autocentrado, volta-se naturalmente para os outros, aqui e em qualquer lugar do mundo. Quando alguém vem sugerir um programa na Sangha, sempre respondo: - "Excelente! Você, que tem esta ideia e motivação, pode começar este projeto, nós o apoiaremos! “  Infelizmente os que trazem estas idéias na maioria dos casos desaparecem assim que a perspectiva de trabalhar surge.
Os que realizam fazem sem vir sugerir que outros o façam.

Uma coisa importante que precisamos evitar é que as Sanghas, ou as instituições budistas, sejam cooptadas pelos que desejam instrumentalizar o budismo para defender objetivos ideológicos ou de fundo partidário. Este tipo de tentativa, vez por outra ressurgente por tendências extremistas de qualquer cor, tende a criar debates, facções e cisão nas comunidades budistas. O objetivo essencial de despertar não pode ser abandonado em favor de ideologias transitórias: é o ensinamento de Buda, este permanente, que precisa ser preservado.


[Entrevista concedida à Revista Bodisatva, nº 30, por Genshô Sensei]