terça-feira, 1 de junho de 2010
Relato de um retiro de rua
Foto de um retiro de rua em 1991, o movimento foi iniciado pelo Zenpeacemakers.
Breve Relato de um Street Retreat
por Monge Kohô
No período de 13 a 16 de maio, participei de um Retiro de Rua (Sesshin), em Zürich. Nossa prática foi orientada por Genro Grover Gauntt Sensei – dos Zen Peacemakers dos EUA –, assessorado por Jürgen Lembke, experiente praticante suíço.
Ainda que seja inviável relatar em detalhes a enorme riqueza de eventos que vivenciei em um tão breve período de tempo, surge forte a aspiração de partilhar ao menos um pouco, por gratidão e contentamento.
Nosso grupo estava constituído por 09 pessoas: 07 homense 02 mulheres. Ao longo de quatro dias e três noites, tivemos a oportunidade de partilhar um cotidiano muito singular, deliberadamente baseado na renúncia. Sem dinheiro, roupas extras, telefones, computadores, carros ou outros confortos, fomos para as ruas exercitar a entrega e a confiança. Como definiu Genro Sensei, num Retiro de Rua aceitamos nos “desconectar” das nossas rotinas e certezas, e nos despimos um pouco de tudo que nos é familiar, inclusive de nossos papéis habituais. Dessa forma, um pouco mais “nus” de tudo que temos, fomos reaprender a nos relacionar de modo mais direto com os outros seres e com a vida. Em termos práticos, abrimos mão de muitas realidades por nós mesmos construídas, que usualmente representam barreiras a um diálogo existencial verdadeiro e profundo. Para isso, nos apoiamos solidariamente de modo a deixar para trás muitos obstáculos ao viver no aqui-agora, especialmente nossas identidades mais seguras e às quais temos mais apego.
Como guias simbólicos, tivemos o amparo dos três princípios básicos dos Zen Peacemakers: not knowing (o não-saber), bearing witness (dar testemunho, experienciar), e loving actions (ações compassivas, amorosas). De modo direto, esses princípios remetem ao Buddha (a Unidade), ao Dharma (a Diversidade), e à Sangha (a Comunidade de Prática, a escola de aprendizagem da harmonia, da Unidade na Diversidade). De modo a manifestar esses conceitos no mundo, nos dedicamos a praticar em condições mais desafiadoras que as usuais, mas de forma honesta e diligente, cultivando o estado de paz natural da mente. Fazíamos meditação sentada (zazen) três vezes ao dia – nos momentos em que as circunstâncias assim o permitiam – e realizávamos a liturgia dos “Portais do Doce Néctar” pelo menos uma vez ao dia, com suas recitações que se referem a mitigar as fomes em todos os planos da existência.
No período do Retiro, o clima colaborou: choveu na maior parte do tempo. Já estamos na primavera na Suíça, mas ainda assim as noites aqui são bastante frias, especialmente no período que antecede o amanhecer; na noite mais fria, chegamos aos 4 graus centigrados. Por isso, pudemos vivenciar condições que nutriram em cada um de nós a gratidão por tudo que temos, e uma empatia real para com aquelas pessoas que moram nas ruas, e que necessitam desenvolver a cada dia uma estratégia de manutenção de sua integridade e saúde. Em duas noites, dormimos ao ar livre, protegidos por construções para nos abrigar do frio, da chuva e de possíveis curiosos ou da polícia: numa ocasião, embaixo das escadarias de uma
Escola, e em outra sob os arcos de uma ferrovia. Nessas ocasiões, para nos aquecer fazíamos uma base com papelões recolhidos durante o dia, nos mantínhamos completamente vestidos e nos cobríamos com o cobertor que haviam orientado a portar. De resto, facilmente confirmei a sentença que afirma que “a necessidade é a mãe da invenção”: desde o início, Genro Sensei nos orientou a cultivar a plena atenção, no sentido de ver os muitos tesouros que se fazem disponíveis a quem nada tem (ou, no nosso caso, quem opta por viver a experiência de ter o mínimo.) E logo começamos a achar coisas que sob outras circunstâncias pareceriam inúteis, mas que agora transformavam-se em preciosos recursos, pela simples adição do tempero da nossa criatividade, a qual era estimulada pela chuva, pelo frio e pela carência de um teto.
O principal apoio, entretanto, não encontramos em coisas materiais. Acolhendo a experiência e orientação dos coordenadores, buscávamos nos relacionar com as pessoas que encontrávamos a cada passo – e caminhávamos muito, o dia todo. De modo especial, recebemos indicações decisivas e ensinamentos vindos daquelas pessoas que realmente vivem em condições de grande risco social. Desabrigados, alcoólatras, drogaditos, todo tipo de desajustados sócio-emocionais, foram em várias ocasiões as fontes das respostas que nos abriram portas. Em especial, quero relatar sobre um rapaz, a quem chamarei T., a quem encontramos – ou talvez seja mais correto dizer que ele nos encontrou – em mais de um momento de busca de abrigo ou alimento. Sempre alegre e bem disposto, “T” seaproximava e começava a conversar com todos, e acabava por informar, de forma gentil e desinteressada, as melhores possibilidades de obtenção de auxílio naquele dia e momento. Era possível ver que ele detinha um enorme conhecimento sobre as ruas e sobre as dificuldades de quem nelas vive. Com uma incrível gentileza e habilidade no trato, esse autêntico “Bodisatva dos desabrigados” aproximava-se de quem estava nas filas de atendimento, nas esquinas, e ia dando orientações e respostas aos questionamentos que, de outro modo, talvez fosse muito dífícil de resolver. Nossa gratidão ao seu coração bondoso e sua mente de acolhimento, provavelmente desenvolvidos pela compaixão surgida em meio à solidão e dureza da vida nas ruas.
Pude constatar que, se queremos vislumbrar soluções viáveis para os sofrimentos e esafios do mundo em que vivemos, não basta conhecer seus problemas: é preciso vivenciá-los de forma direta, em profundidade. Por isso, também seguindo as orientações, já cinco dias antes do início do Retiro, deixei de cortar o cabelo, fazer a barba e lavar a cabeça. Como durante o período nas ruas tínhamos apenas uma muda de roupa e calçado, foi fácil adotar uma aparência bastante convincente de alguém que mora nas ruas. Ao par disso, também meu tipo ísico é muito mais de um latino que de um europeu, e ainda não sou capaz de me comunicar em alemão ou suíço-alemão; isso tudo facilitou muito as coisas, ao criar mais desafios junto às pessoas a quem abordava para pedir. Não foi difícil entender na prática o conceito, que eu já conhecia racionalmente, do que é ser uma “pessoa invisível”. Pude ali ver minhaspróprias atitudes refletidas naquelas pessoas que passavam ao largo sem nem mesmo responder, por eu estar com uma aparência não muito recomendável, com um aroma também algo desagradável, e uma limitada capacidade de comunicar minhas idéias. É compreensivelmente mais fácil ignorar alguém nessas condições; da mesma forma, também fica mais fácil entender a ética subjacente, encontrada entre os moradores de rua, que gera uma atitude de apoio entre os que se reconhecem irmanados pelas mesmas limitações. Naturalmente, logo surgiu em cada um de nós uma alegria profunda em cada porção de alimento que alguém nos dava, e uma alegria ainda maior ao partilhar com os que nos acompanhavam. Creio que compreendi como nunca a dedicação que fazemos ao receber o alimento, o qual chegou até nós “através do esforço de inumeráveis seres; que possamos viver nossas vidas de forma digna de merecê-lo...”
Numa ocasião, chegamos a um local que fornece sopas ao final da tarde para pessoas carentes. Na fila, fomos informados que só restavam cinco pratos para distribuir.
Sem qualquer combinação prévia, fomos um a um saindo da fila, e ao nos reencontrarmos os nove, já lá fora na calçada, todos sorríamos, totalmente alegres pelo que tivéramos a coragem de abrir mão. A fome de comida foi transmutada em plenitude de sentido. Já sem nos causar muita surpresa, logo a seguir tínhamos a companhia de T, que nos explicou com riqueza de detalhes que, de fato, para ele também era bom abdicar da sopa naquele dia, pois precisava mesmo fazer dieta para reduzir a barriga, já que nem a natação, nem a academia de ginástica que el e frequentava estavam dando resultados...(!) Antes de nos separarmos, como de hábito ele nos indicou outro local onde, afinal, fomos acolhidos e recebemos a refeição que nos garantiu mais uma noite sem fome.
Em outro momento, chegamos até uma Igreja – de confissão Evangélica-Reformada – que nos acolheu fraternalmente. Essa Igreja, St. Jakobs, é especial em muitos aspectos, por ser eclaradamente “aberta”. Para nós, o principal diferencial era saber de antemão que lá existia a prática de meditação silenciosa, duas vezes na semana. Confirmou-se nossa boa expectativa, e nos permitiram dormir dentro do templo. Inclusive pudemos participar de um lanche comunitário, preparado por e para imigrantes asilados (“sans-papier”). Em troca, nos foi requisitado que ajudássemos na limpeza e organização do local, preparando-o para o Serviço religioso da manhã seguinte. Trabalhamos sorrindo, porque o samu foi fácil e pleno de sentido, e, como um dos nossos participantes tocava piano, ainda pudemos preparar o sono embalados por boa música e boas reflexões sobre a importância de estar-se disposto a acolher ospresentes que a Vida oferece. Nessa noite, dormimos como reis e rainhas, num lugar
aquecido, sem chuva, e até tivemos desjejum na manhã seguinte, a partir das maravilhosas sobras do lanche da noite anterior...
Desejo assinalar que me causou um certo espanto a rapidez com que, no Retiro, percebi que “nós” passávamos a ser “eles”, e “eles” passavam a ser “nós”. A partir da mudança de contexto em que eu estava inserido, quase que de imediato comecei a sentir simpatia e finidade por todos aqueles seres que usualmente procuraria evitar: “... os gatos mais pobres das ruas, os cães mais sarnentos...” E, pelas mesmas sementes de apegos e aversões, um quê de prevenção e antipatia em relação a qualquer ser de boa aparência, limpo, confortável. Felizmente, sempre lá estava Genro Sensei, para nos lembrar que o diferencial é que tínhamos o mérito de perceber a abundância dos milagres cotidianos, e conhecer a preciosidade do Dharma, com que reconectávamos a cada Zazen, a cada liturgia. Quando as ondas das emoções se aplacavam no silêncio, era fácil perceber que podemos propor uma solução para os desafios encontrados, mas isso não significa que tal seja a única, nem a melhor. A realidade do mundo é complexa, sempre, e somos parte das causas e condições que tecem a trama da vida, seus problemas, suas soluções.
Desse modo, a cada experiência foi se fortalecendo em mim a percepção de quanto poder de auto-transformação somos dotados, já que não é possível separar a realidade em “nós e eles”. Grande contentamento: uma cisão clara da não-separatividade, na prática, em carne-ossos-frio-e-sono, ali mesmo nas ruas, debaixo da chuva, há três dias sem banho e sem escovar os dentes...! Ao mudar meu olhar para as circunstâncias, elas como que se tornavam plásticas, e as mudanças se manifestavam na abundância de tempo por não haver nada a fazer, no poder de optar por não haver nada a obter.
Assim, pelas mesmas vias, fui confirmando que impor uma solução, por melhor que ela possa me parecer, representa em certa medida uma violência para quem vivencia o problema. Neste ponto, a mim parece que ajudar, assim como ensinar, consiste mais em ouvir com plena atenção as perguntas do que em oferecer respostas. Ao longo daqueles dias, minha noção de realidade social se ampliou notavelmente; pude constatar a enorme e tocante generosidade que habita em cada ser humano, pude confirmar como podem ser simples e prosaicos os trajes que o amor ompassivo usa para se manifestar. Em muitos momentos, ser digno de receber um olhar de acolhimento ou um sorriso fizeram a diferença entre existir ou ser ninguém. Embora a pressa da vida cotidiana nos faça muitas vezes esquecer, estamos a cada momento criando e recriando a realidade do mundo, com o nosso olhar, com a nossa motivação, com a nossa presença.
Assim, na aspiração de poder partilhar a alegria de ter vivido essa experiência notável, manifesto minha incomensurável gratidão por todo apoio recebido na consecução dessa “loucura sábia”. À família, pela paciência, respeito e prática dedicada ao nosso bem-estar e integridade; aos Professores de hoje e sempre, pela generosidade dos ensinamentos e da eferência viva; e aos irmãos e irmãs de retiro, pela presença honesta, corajosa e fraterna. Que qualquer mérito resultante seja revertido em benefício de todos os seres. E que possamos juntos – todos, ricos ou pobres, alegres ou tristes, com casa ou sem-teto, famintos ou saciados – seguir o Caminho de Buddha, aqui e agora, que na verdade é só e tudo quetemos.
(copiado do site Viazen)