segunda-feira, 30 de junho de 2014

A copa e as identidades


Pergunta – Queria que o Senhor nos orientasse quanto às práticas em casa.

Monge Genshô - A dificuldade das práticas em casa é a determinação. A disciplina. Você precisa pegar o seu zafu, criar um cantinho na sua casa, fazer um pequeno altar, lá acender incenso, e dizer: “eu vou me sentar, 10 minutos, mas eu não vou me levantar antes dos 10 minutos passarem”. Depois vou me sentar 20 minutos, e serão 20 minutos.

Se você fizer assim, criar o hábito e a disciplina, você começa a mudar sua mente, porque essa prática aqui é para aprender, e para sentir o apoio da sangha, mas nós não somos diferentes. Sim, eu sento muitas vezes, e faço muitos retiros, mas não sou eu, são vocês! São vocês que me pedem e eu venho e tenho que sentar de novo. E aí aparecem os efeitos, e depois outro e mais outro e esse é o privilégio de ser monge, porque a sangha força você a praticar. Quando você está sozinho em casa, não tem isso, então você precisa ter disciplina.

O melhor horário é de manhã cedo, porque a casa está em silêncio, e não é o horário que ninguém vai convidar você para sair e tomar chopp, então você senta e faz o zazen, de manhã cedo, à noite é mais difícil. Mas se algum de vocês tiver insônia, levante e sente. Se aconteceu qualquer coisa ruim que agita, levante e sente. Não tome comprimido, sente.  Depois de meia hora sentado você estará caindo de sono, levante e deite na cama. Duas vantagens: não tomou o remédio e se livrou do problema, conseguiu colocá-lo na perspectiva correta, lá fora do meu “eu”, esse “eu” que eu acredito e que pode ser ofendido, que pode ser incomodado, que pode ser demitido, que pode ir pro SPC, esse eu todo em que me convenceram a acreditar.

Eu posso jogá-lo fora, porque foi só um jogo que outros criaram para mim. Eu não preciso entrar no jogo dos outros, eu posso jogar meu próprio jogo, que é me libertar de cada penduricalho que eu colocar na minha vida.

Qual é o time aqui? Goiás não é? Então você coloca a bandeira do Goiás e é mais uma fonte de sofrimento. O Goiás perde, você fica infeliz. Então, quanto mais coisas você pendura no seu eu, mais problema. Então, não se agarrem aos jogos e bandeiras que os outros criam. Nós vamos fazer sesshin agora, na época da copa, e quem estiver em retiro não vai saber resultado nenhum de jogo. Estaremos fazendo zazen, nós não entramos no jogo, é outro jogo.

Isso não quer dizer que nós não possamos ir no jogo e achar muito divertido. Mas do ponto de vista budista, como deveria ser? Eu deveria  ir, assistir o jogo, apreciar os bons lances de ambos os lados,  acabou, ganhamos, perdemos, etc, e acabou. Não tem nada, nada para levar para a rua. Não é?

Eu tive uma experiência fantástica uma vez, em 1998, na copa da França, me convenceram a botar uma camiseta amarela. Nós fomos a um restaurante na Champ´s Elysés, cheio de franceses, e eu cantei o hino deles com eles e depois cantamos o nosso. E nós perdemos o jogo, vocês lembram. E eu estava com a camiseta amarela, minha identidade estava pregada em mim, e eu saí na rua, e os franceses pediam desculpas,  muito gentis. Atrás de nós um grupo gritava que nós voltaríamos a pé para a América do Sul, um grupo de argentinos... E como o metrô fechou e a cidade parou, nós tivemos que ir à pé até a Opera onde era nosso hotel, com esses acontecimentos todos sucedendo, eeu vi o que é que é ter uma camiseta amarela no corpo. Uma identidade. E eu não era Monge!

Então, a gente sofre pela identidade que veste, que você assume, é bem assim.
(fragmento de palestra em Goiânia, continua)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Corpo, repetições e o manto


Pergunta – O sofrimento físico, não digo nem apenas somente a dor nas pernas, mas uma doença grave, uma ferida aberta, isso compromete este estado de lucidez e concentração?

Monge Genshô - Com certeza. Mente e corpo estão ligados. Se você está doente, a doença atrapalha você. Não adianta dizer que não é verdade, se você não cuidar do seu corpo, um dia ele começa a atrapalhar. Esses dias eu cheguei na minha casa e disse à minha esposa: “está na hora d´eu mudar de corpo porque esse aqui, já era, está com esclerose em articulação, artrose, etc, começa a dar problema”.

Então, o corpo é um instrumento muito necessário, uma âncora que segura você aqui, e permite fazer uma determinada prática. Se você perde o corpo, muitas portas de acesso ao universo são fechadas, o olhar, os ouvidos, nós usamos o corpo muito, ele não é nem um pouco desprezível. Então quando nós dizemos “mente”, mente e corpo são uma coisa só. Por isso, cuide do seu corpo, e cuide da oportunidade que você tem agora, há uma oração no fim do dia nos mosteiros Zen, que diz assim: “praticantes eu lhes peço encarecidamente, não percam tempo, porque o tempo rapidamente transcorre e a oportunidade se perde”.

Vocês têm a oportunidade de praticar e despertar. A outra forma é: continuem iludidos. Morram iludidos, nasçam iludidos e repitam tudo de novo. Esse na realidade é que é o verdadeiro castigo, ficar preso aqui, repetindo tudo de novo. Já pensaram? Vou morrer, aí eu nasço, não sei quem sou, mamãe me dá um nome, me manda para o colégio, eu tenho que aprender tudo de novo, aí tem colegas mais fortes para me dar cascudos,  tudo de novo!  Começar ignorante, tudo de novo. Isso é o verdadeiro castigo, porque a única coisa com que você conta quando nasce, que você pode levar, é seu carma.

Então você tem que ter um carma que direcione você para coisas melhores e certas, senão você vai ser direcionado para as coisas piores. É uma péssima idéia, por exemplo, morrer de overdose.  Nascer de novo com vontade de se drogar? Uma péssima idéia morrer com raiva, já nascer num mundo de ódios. É uma boa idéia morrer com os pensamentos mais belos, e a vontade de se manifestar num mundo belo, num lugar com pessoas de bons sentimentos.

Nós dizemos que a prática tem imenso poder. Nós dizemos que o manto budista tem grande poder. Há uma história de uns ladrões que roubaram o manto de um monge, e levaram para um cabaré, deram para uma prostituta e disseram, “te veste de monja e faz um strip tease em cima das mesas”. E sob os assobios e palmas dos homens ela fez o strip tease com o manto do monge. E por causa disso, ela renasceu em uma família budista e recebeu excelentes ensinamentos e tornou-se uma monja. Pois é. Tal o poder do manto. Como a história budista é surpreendente não é? Todo mundo fica esperando um castigo, e não tem. Portanto, é grande bênção ter esse contato.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Identidades


Pergunta – Me remetendo à uma pergunta anterior, de que quanto menos identidades tivermos menos sofrimento teremos e, com essa nossa busca por essas identidades e crescimento, como alcançar essas identidades não em um sentido literal,  mas com um outro significado?

Monge Genshô - Nós precisamos dessas identidades para transitar no mundo, então você precisa ter identidade. Veja, eu ponho as roupas de monge e venho aqui falar pra vocês com as roupas de monge, eu uso a identidade “Monge Genshô”, meu mestre me deu esse nome. Fazem 14 anos que eu tenho esse nome, mas essa identidade é uma utilidade que eu estou usando aqui. Se eu chegar em casa, tiro as roupas de Monge,  penduro no cabide e digo: “ah, eu estou lá”, não, eu não estou lá, é só um cabide. São só as roupas de monge que estão lá, aqui há um homem nu que vai tomar banho.

Então, eu chego em outro lugar e sou consultor. Aí dizem: “qual o seu nome”? Eu sou o Chalegre, consultor. O Chalegre, eventualmente usa gravata, terno, é outra identidade. Quem sou eu? Nenhum dos dois. Essas são fantasias que eu estou usando para entrar nesse baile à fantasia.

Aluno – na verdade então, o que traz essa raiva, esse sofrimento, é o apego que se tem a essas identidades?

Monge Genshô - Exato. Se você insultar o Monge Genshô, eu posso chegar em casa e dizer: “ah, fui insultado”, o monge foi insultado, posso tirar as roupas e pendurar no cabide e colocar a roupa do Chalegre e dizer: “poxa monge, foi insultado hein”? Isso seria lucidez. Se eu me identificar com a roupa e o nome, aí eu sofro. Se eu não me identificar e usá-los, aí eles são uma utilidade. É diferente. Deu pra entender melhor?

Pergunta – No zazen nós temos que pensar em quê?

Monge Genshô - Quem realmente está atento? Quem é esse que está atento? Você senta em zazen junto com todos os seres, a grande terra, os pássaros, cães, formigas, todos estão sentados junto com você, você é o centro do universo, o universo gira e você está ali, imóvel. Se é assim, você está atento a quê? Quem está atento, se você e tudo são uma coisa só? Deixe a atenção fora. Você começa com a atenção, mas tem um momento em que você tem que estar além de estar atento, além de percepção e não percepção, mas essa já é uma resposta mais difícil.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Uma transmissão além das escrituras


Pergunta – O Zen é meditação, certo? Ele é um corte, axiológico do próprio budismo. Então porque o Zen ainda é indexado ao budismo, se ele manteve a linha própria dele?  Porque ele tem fundamentações para andar sozinho. O senhor mesmo colocou que os papéis são simplesmente coisas explícitas, escritas, e o tácito, o não escrito, é a base do Zen, então porque o Zen Budismo, não é somente o Zen?

Monge Genshô - Porque o Zen, do ponto de vista do Zen, é budismo. Dogen, fundador da nossa escola no Japão disse: isso é budismo, esses são os ensinamentos de Buda.
O budismo diz que o Zen consiste na transmissão de Buda para Mahakashyapa, porque ele levantou uma flor, numa assembléia sem dizer uma palavra e Mahakashyapa sorriu, e então ele disse: “Mahakashyaka foi o único que entendeu” o verdadeiro ensinamento, a verdadeira transmissão, é uma transmissão além das escrituras.

O Zen tem muitos textos? Tem. Os professores estão sempre falando? Sim, sempre falando, e dando palestras. Eu perguntei para meu mestre, “por que falamos tanto”? E ele disse: “porque isso é tudo que nós temos”. Não temos outra maneira de transmitir, além da palavra, dos livros, mas seu último estágio tem que ser além das palavras. Então o Zen quer dizer: “nós somos o ensinamento, aquele de Buda para Mahakashyapa”.

Surgiram muitas escolas, dos mais variados tipos, elas têm sentido? Tem, porque as pessoas são diferentes. Há pessoas devocionais, há pessoas estudiosas, há pessoas que querem se remeter ao significado das palavras originais, todas essas escolas têm suas virtudes. O Zen também tem suas virtudes ao querer voltar à prática original de Buda - Buda sentou em zazen, então nós vamos sentar em zazen. Se Buda sentou nessa postura, então vamos sentar nessa postura, porque nós vamos imitar Buda. Essa é a essência do Zen. Mas ela serve para todo mundo? Não, não serve para todo mundo. As escolas budistas são necessárias porque as pessoas são diferentes. As outras religiões também são necessárias, porque as pessoas são diferentes. Existem pessoas que precisam trilhar aquele outro caminho, e por isso essa diversidade não é pobreza, é riqueza.

Por que o Zen precisaria seguir o seu caminho? Afinal de contas cada mestre segue o seu, os alunos seguem o mestre que querem! Então  existem múltiplos caminhos.

Pergunta – Ontem na palestra o senhor deu ensinamentos sobre carma, sobre as escolhas, e se o senhor respondeu com a questão da sabedoria. Eu entendo que quanto mais sabedoria você buscar, mais clareza e menos sofrimento. Mas, e o medo?  Pois se estamos aqui, temos a preocupação de mudarmos a nós mesmos,  e às vezes a pessoa pode ficar o perturbada em tentar fazer sempre o melhor,  encontrar escolhas mais corretas, há esse medo do medo?

Monge Genshô - Não há que ser perfeito. Não tente. Seja o que você é, um homem comete erros, um homem se engana, na verdade, nós ao tentarmos seguir algum modelo ficaremos infelizes. Nós temos que fazer a nossa prática de sempre esquecer o passado. O erro do passado é sempre esquecido, agora vou fazer assim, melhor, porque produz menos sofrimento, mais felicidade para mim e para os outros seres.

Eu só estou andando, e a vida se mostra a cada passo. Não tente caminhar e ser perfeito. Não tente ser santo, tente ser só um Bodhisattva, um Bodhisattva tem outra visão do mundo. Nagarjuna foi assassinado, ele era um grande Mestre do século I ou II DC. Os seus discípulos o encontraram esfaqueado, e perguntaram a ele: “quem fez isso”? E ele disse: “eu mesmo”. E os alunos disseram que sabiam que não fora ele que se esfaqueou, que dissesse quem havia feito aquilo, e ele disse: “isso é resultado do meu carma passado, de alguma maneira no meu passado eu criei condições para que isso acontecesse. Então fui eu mesmo que fiz isso, agora, se eu disser que uma pessoa fez isso comigo aqui e agora, um assassino, vocês o odiarão e o perseguirão, e esse ciclo não terá fim”. E morreu sem revelar. Ninguém sabe quem matou Nagarjuna. Ninguém foi perseguido, não houve nenhuma vingança. Essa é a visão do Bodhisattva.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Entre bodhisattvas e eremitas


Aluno – O zazen então é para desconstruir o eu? É para ajudar nesse processo?

Monge Genshô - O zazen vai ajudar você a ter lucidez, clareza e estabilidade na sua prática. Se vai fazer com que você veja que seu eu é puramente construído, é outra coisa. Eu estou explicando aqui intelectualmente, e acho que intelectualmente a maioria entendeu. Mas entre entender intelectualmente e sentir, vai uma diferença muito grande. Eu disse: “seu eu é construído”, você só se ofende porque acredita nessa identidade que você construiu. Não é?

Ontem um amigo me deu um cartão, e eu comecei a ler os títulos, e, de título em título, professor, doutor, psicoterapeuta, massoterapeuta, psicanálise, acupuntura, editor, a quantidade de identidades que a gente vai agregando à nossa vida é muito grande, você começa a juntar, juntar e cada vez a identidade fica mais construída.

Se eu começo: ah, eu sou consultor, sou Monge Zen, articulista, conferencista, etc, quanto mais identidades, mais fácil de ser ofendido, porque tem mais alvos para alguém atingir. Então na verdade, muitas identidades é perigoso.

Então o que fazemos? Tentamos diminuir, diminuir, cada vez menos identidades. Se não tivermos mais nenhuma identidade, mais difícil de ser ferido. O zazen vai permitir isso? Não, ele vai criar condições para você ter uma mente que é capaz de atingir outros insights, e esses insights têm que ser emocionais, porque a compreensão intelectual não vai resolver. Você explica, está entendido, mas, vem um insulto e a raiva vem no mesmo instante, porque você só compreendeu com seu intelecto, não compreendeu com seu coração, com suas entranhas.

Pergunta – O Senhor falou dos votos do Bodhisattva e eu fiquei com aquilo e parece-me que no budismo não adianta ter só boas intenções, tem que haver um esforço a mais para transformar essas intenções em prática e, aquela comparação do budista como “santo” que o zen em particular não quer ser santo, queria que o senhor falasse um pouco sobre isso.

Monge Genshô - Isso é bem importante, porque o santo quer um objetivo, ele quer ir para o paraíso, e o santo tem uma negociação, com uma estrutura qualquer de virtude. “Eu vou atingir tais virtudes, e essas virtudes me distinguem dos outros homens”. Isto não é iluminação, isso é santidade. A santidade merece muita reverência sem dúvidas, eu acho que um homem santo merece ser reverenciado, mas ele não está nem aos pés de um Bodhisattva.

Porque o Bodhisattva é ruim como todos, cheio de defeitos e dificuldades, mas ele está se empenhando para ajudar os homens. Ontem nós estávamos fazendo uma imagem a respeito da iluminação, o budismo é como um barco que você toma, e atravessa o rio da ignorância, e sai dessa margem aqui e vai para a outra margem, “Prajna Paramita” a margem da sabedoria, aí quando você chega na outra margem, o que você tem que fazer com o budismo? O budismo só existe para ser abandonado, porque quando você atravessa o rio, não vai sair carregando a canoa nas costas. A lógica é abandonar a canoa. Mas se você é um Bodhisattva, você olha para a margem de cá, onde estão todos os homens sofrendo, mergulhados em ilusões, ignorância e fantasias, e então você vira o barco, e volta, para ajudar as pessoas a atravessarem o rio. Porque seu sentimento é que não pode deixar seus companheiros do lado de cá, perdidos.

No início eu disse: “vocês não podem abandonar seus companheiros, se estão sentados aqui em zazen sofrendo, ninguém pode ir embora”. Não é? Porque isso é a prática dos Bodhisattvas. Se fosse a prática dos eremitas, podíamos subir a montanha e ficar lá sozinhos, isolados, meditando e atingir a iluminação. Porque não importam os homens que estão na outra margem. Essa é a diferença entre um Bodhisattva e um santo eremita.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Quem é este que está assim?


Pergunta – Nos textos do site, em vários deles há uma questão que o senhor coloca, por exemplo, se eu tenho alguma manifestação psicológica de raiva, de medo, o senhor aconselha a gente a fazer a pergunta: “Quem é este que está com raiva?” O senhor poderia esclarecer, porque pra mim é confusa essa questão. A minha dúvida na verdade é “quem é esse que está com raiva”?

Monge Genshô - Pois é. Quem é este que está com raiva? Se eu pensar “quem sou eu”, eu vou ver que meu “eu” é uma construção, eu construí o meu “eu”.

Para entender melhor, imagine que vocês perderam toda a memória e estão deitados numa cama de hospital, depois de um acidente, e não sabem mais quem são as pessoas, sua família, coisa nenhuma. Aí alguém chega e diz: “Você é fulano. Lembra disso? Lembra daquilo?” Não, não lembra nada. Aí mostramos fotografia, etc, e tentamos reconstruir uma memória, para a pessoa ter uma noção de quem ela é, porque essa noção toda, é uma construção que você fez. É você que acreditou durante a sua vida que você é seu nome, sua personalidade, isso e aquilo. Mas quando você fica com raiva, como é que é? Alguém vem e insulta você. Quem fica com raiva? Minha construção. Ela é que está abalada em seus fundamentos.

Eu sempre me vi como honesto, alguém vem e me chama de desonesto, fico bravo, porque ele está abalando os fundamentos do meu “eu”, e meu eu é precioso pra mim. Eu preciso dele para transitar no mundo. Eu não estou dizendo que está errado você ficar irritado, está muito certo na verdade, porque você precisa desse eu honesto para funcionar no mundo. Se todo mundo começar a dizer que você é desonesto, seu “eu” de funcionamento no mundo está muito abalado, ou deveria.

Então, a identidade que você assumiu, é a identidade que pode ser abalada, quem é que você defende? A construção. Então, recomendo você a perguntar: “quem é que se ofende”? É como alguém que diz assim: “Ah, corintiano é isso”. E você é corintiano. Você fica ofendido porque? Quem fica ofendido? O corintiano dentro de você, porque você assumiu que é corintiano. Se você não tivesse assumido essa identidade, não haveria essa ofensa. Então a pergunta “quem é que se ofende, quem é que tem raiva, quem é que tem ódio”, ela tem muito sentido não tem? Porque quem se ofende é uma construção mental, essa construção mental foi você quem fez, esse “quem” é construído, não é real.

Por isso quando alguém se ilumina fica difícil ofender. Fica difícil até matar, como o Mestre Zen que estava sentado, a cidade foi invadida e veio um general com a espada suja de sangue e o Mestre Zen nem se abalou, continuou lá no templo sentado meditando. O general entrou na sala e disse: “você não vê que eu posso matá-lo em um instante”?  E o Mestre disse: “E você não vê que eu posso morrer em um instante”? Eu posso morrer. Não estou agarrado à vida, não tem problema, então me matar ou não me matar não faz diferença. Então se você quer o medo, não vai vê-lo.

Porque a identidade e o amor à vida, àquele evento daquele instante é irrelevante. Eu posso morrer aqui nesse instante, vai acontecer a qualquer momento.
(perguntas em palestra pública em Goiânia, decupadas da gravação por Rachel San)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sem grandes igrejas centrais


 (continuação de palestra)
O budismo não se desenvolveu como as grandes igrejas centralizadas, grandes poderes centrais. Mas ele se espalhou através do ensinamento e os mestres, tipicamente no Zen, instalavam mosteiros e ensinavam, e os alunos que queriam o ensinamento daquele mestre específico, subiam a montanha para ir ao mosteiro falar e estudar com ele. Então se diz: “Mestre fulano de tal, tão importante, teve tantos discípulos”. Este é o significado dessa história. Ele estava subordinado a uma instituição? Não. Não era assim. Havia um grande movimento, que chamamos de “Movimento do Zen” e esses mestres eram discípulos de uma determinada corrente de ensinamentos de um mestre do passado, e a isso chamávamos de escolas. Eram escolas de ensinamento, e não estruturas de poder e os mestres zen, defenderam ferozmente a sua independência. Cada um ensinando a sua linhagem, da maneira como ele achava que devia ensinar. Quem quer, aprende com aquele mestre, quem não quer, vá embora por favor, e treine em outro lugar. E esta é a tradição até hoje com grande fragilidade institucional com muitas dissidências.

Então nós temos aqui hoje mais de 30 pessoas. Isso aqui para o Zen é multidão. Porque isso não é normal. Normal é sentar em zazen, sofrer, doer e não voltar mais. Quem volta tem alguma coisa na cabeça, uma angústia existencial que diz: “eu quero descobrir o que tem por trás disso, eu quero continuar”. Esta pessoa que continua depois desse sofrimento, é a pessoa que nos interessa.
Uma vez, eu tinha uma academia de karatê, há muitos anos atrás, e meu primeiro professor foi fazer uma palestra, e eu convidei os alunos de karatê para sentar na sala, e disse: “temos um Mestre Zen aqui, vocês têm a oportunidade de ouvir a filosofia que está por trás das artes marciais”. Aí foram 30 alunos pra sala. Ele olhou todo mundo, pegou um sino e disse: “por favor, ajoelhados de frente para a parede”. Aí todos se ajoelharam no tatame, pensando que ficariam 2 ou 3 minutos ali em concentração. E ele deixou todo mundo ajoelhado 20 minutos.  4 pessoas levantaram e saíram pela porta. Ele tocou o sino, todos se voltaram para o centro, ele falou: “de frente para parede, por favor, mais 20 minutos”. E bateu o sino. Foi todo mundo embora, ficaram 4 pessoas, eu, um professor de judô, um de karatê e um aluno. Aí ele fez uma palestra sobre o Zen e disse: “Eu não queria falar para aqueles que vieram aqui só por curiosidade”.

Então, na nossa tradição, se você quer ouvir uma palestra, primeiro temos zazen, depois temos palestra, porque quem não fez zazen, e não sofreu ali sentado, não esperou o sino tocar, não ficou com sono, não ficou com dor na perna, quem não fez isso, não merece ouvir uma palestra do Zen. O resultado, é que não fica muita gente. Então parabéns a vocês, que ninguém foi embora!
(continua)

terça-feira, 17 de junho de 2014

O comentário iconoclasta de Mestre Matsu


Muitas lendas foram contadas a respeito de Buda, dizem que quando ele nasceu saiu andando, caiu uma chuva doce, choveram pétalas e ele apontou para cima e para baixo, há uma estátua de Buda assim, Buda menino, e disse: “entre o céu e a terra eu sou o mais honrado”. Matsu, que foi um grande Mestre Zen da China, ouvindo essa história comentou: “se eu estivesse lá nesse momento, o teria matado a pauladas, e jogado sua carne para os cachorros”.

Como vocês interpretam esse comentário de Matsu?

Aluno – esse auto julgamento dele não condiz com o processo de humildade e a caminhada da iluminação. Porque se ele se julga honrado, se julga mais e diferente dos outros.

Exatamente. Então Matsu fez esse comentário, que se ouvisse isso, o teria matado a pauladas. Isso mostra muito do espírito com que o Zen olha esses aspectos míticos e religiosos que sucedem na história do próprio budismo. Porque o budismo também teve as mesmas tendências de todas as religiões. Teve a tendência à ortodoxia, aqueles que pegam textos do passado e querem conservar os textos tais como eram, naquele tempo, milênios atrás. Dois milênios e meio atrás era assim, será que deve ser assim, ainda hoje?

Por exemplo, quando as mulheres foram admitidas na ordem budista como monjas e rasparam a cabeça, havia muito sexismo. Então para que os homens pudessem admitir aquela revolução de fazer com que as mulheres fossem monjas e sacerdotes, as primeiras regras diziam que uma monja deveria andar sempre a dois passos atrás de um monge. Que uma monja estava sempre subordinada a um homem, nem que ela tivesse 50 anos de prática e ele tivesse sido ordenado ontem, ela estaria subordinada. Então essas são as regras de 2.500 anos atrás, na Índia.

Já na China, 720 anos depois de Cristo, Pai Chang pegou as regras e escreveu de novo, e esqueceu essas coisas todas. Então o Zen, nos últimos 1.400 anos passou a ter monjas abadessas, mestres, e isso mudou completamente, já há 1.400 anos que o Zen tem esse processo, embora, ainda, o número de monjas seja 1/10 do número de monges, principalmente no oriente. Aqui no ocidente, parece que não é bem o caso. Mas, essa tendência à ortodoxia foi abandonada e ela ficou restrita às escolas que ficaram seguindo essas regras, do que chama-se o “Vinaya " do qual existem várias versões.

O Zen então abandonou o Vinaya indiano, já há um milênio e meio atrás e começou a seguir regras próprias. E também surgiu uma tendência iconoclástica no Zen, bastante forte. Como nos primeiros anos o budismo tornou-se muito estudioso, foi ficando cada vez mais filosófico, cada vez mais profundo, cada vez mais complicado na sua discussão filosófica, então foi acontecendo com ele a mesma coisa que aconteceu em Bizâncio. Quando dizemos assim: “essa é uma discussão bizantina”, é porque em Bizâncio, que é o nome antigo de Constantinopla, que é o nome antigo de Istambul, os teólogos se reuniam e discutiam, diz-se, quantos anjos cabiam na cabeça de um alfinete. E isso parecia uma discussão teológica importante.

Então este tipo de coisa começou a surgir no budismo, por causa do estudo escolástico de grandes estudiosos. E quando Bodhidharma chega na China, ele quebra isso, chega dizendo que a transmissão do Zen é uma transmissão além das palavras e dos textos, diretamente de mestre para discípulo.

E então surgem essas anedotas típicas do Zen, às vezes ultrajantes, como a anedota de que nos mosteiros Zen os textos sagrados, os sutras, ao invés de serem colocados no altar, são colocados em estantes, em outros lugares. E havia um templo onde os textos estavam próximos dos banheiros. E um monge começou a usar os textos para se limpar. O mestre foi informado e chamou o monge. “O que você está fazendo”? E o monge explicou: “Eu descobri que a sabedoria que está nos textos é a sabedoria dos outros, e essa sabedoria é inútil para mim, e então resolvi dar a esses textos que não passam de papel sujo de tinta, uma melhor utilização”.

E o mestre disse: “ah, então você se iluminou! Mas se você tem um traseiro iluminado, use papel limpo!”

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Compaixão e amor


(Sangha zen de Concórdia assiste palestra em vídeo)
(continuação)
Pergunta – O senhor disse que devemos ter compaixão pelo próximo, como é a visão do amor dentro do budismo?

Eu não gosto da palavra “próximo” porque parece que ele está mais próxima de mim, e você está mais distante. Mas na realidade não é o próximo, a nossa compaixão tem que ser por todos “os seres”. A nossa compaixão nasce do fato de você perceber que você não é você sozinho. Enquanto você acreditar em você sozinho, é natural que o sofrimento do outro seja só o sofrimento do outro, afinal, não precisa se importar.

Qual é a nossa noção de festa há milhões de anos? É pegar um outro ser, matar, estraçalhar, colocar os pedaços na fogueira, colocar em cima da mesa e comer dando risada. Não é assim? Essa é a nossa noção sobre os outros seres, é ou não é?

Pergunta – Se não há o eu não há o outro e então não há fronteiras?

Isso, se não há o eu não há o outro. Se não há eu e não há o outro, então a dor do outro dói em mim. Isso é que é compadecer-se. Quando você tem pena da dor do outro, é só isso, pena, não é compaixão.
__

Bem, eu espero que vocês tenham um quadro do budismo  espero que aproveitem. Nós não fazemos nenhum esforço especial para que pessoas venham praticar, até porque a prática do Zen é tão chata. Normalmente a gente senta as pessoas de frente para parede, e mandamos elas ficarem imóveis e quietas, sem pensar no passado e futuro. Se vocês quiserem experimentar, podem, mas, o Zen por tradição não é proselitista, e a tradição é dizer: “vocês estariam melhor em outro lugar”. E essa destruição toda das crenças costuma fazer as pessoas se sentirem soltas no espaço, mas  na verdade, esse é o primeiro passo. Porque eu gostei do Zen? Porque  eu não aguentava mais acreditar. Então quando escutei um Monge Zen falar pela primeira vez, eu tive a sensação: “ até que enfim não estão me enrolando”. E então eu comecei a praticar e ao longo desses 40 anos eu fui me aprofundando devagar, e, em 2001, eu já estava suficientemente louco para virar monge. Isso acontece. Mas também não é muito comum, então não precisam ter medo.
(Fim)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Baldes de água gelada


 (continuação)
Pergunta - Na sua palestra o Senhor descreveu a sequência de causas e efeitos do ponto de vista budista,  eu queria saber se, no budismo,  há um mundo que é fora desse universo, um mundo espiritual ou outro tipo de mundo e como ele interage com essa realidade lógica.

Monge Genshô - No início não adianta eu falar sobre isso, você tem que sentar e praticar meditação. Se você senta e pratica meditação e faz práticas espirituais, pode ser que você atinja outros estágios de percepção. Mas esses outros estágios de percepção você vai discutir com o seu professor. Deixe  contar uma história.

Um dos meus Professores, Moryama Roshi, veio ao templo praticar zazen, começou a praticar, estava sentado e viu uma flor brotar no tatame na frente dele. Brotou uma flor e floresceu na frente dele. Ele levantou entusiasmado e foi correndo até a sala do mestre, achando que estava iluminado, pois havia visto uma flor nascendo do tatame. O Mestre gritou com ele e disse: “Makyo! Ilusão, seu idiota! Volte para lá, não existe flor nenhuma”. Este é o Zen.

Uma vez um monge estava sentado em meditação e começou a ver os discípulos de Buda, que como fantasmas o rodeavam, os grandes discípulos de Buda, porque Buda teve dez grandes discípulos, um deles foi seu filho, e eles giravam em volta dele, e ele sentado ali e aqueles fantasmas em volta. E ele foi até o mestre e o Mestre mandou jogar nele alguns baldes de água gelada,  os fantasmas desapareceram.

Não estou negando a existência de outras dimensões espirituais mas aqui e agora, não é o tempo de falar sobre essas coisas, porque para isso exige-se grande maturidade. Aqui e agora é o tempo de destruir as ilusões, e essa é a primeira tarefa do professor do Zen, tirar tudo em que as pessoas se apoiam. Na verdade, muitas pessoas acham isso terrível, e não consolador. Eu sei. Se você não suporta isso, não é aqui seu lugar. Um monge Zen não tem o que lhe dar.

Um aluno chegou a um Mestre Zen e lhe disse: “Eu queria que o Senhor me desse alguma coisa no Dharma”.  E o Mestre do Zen disse: “Eu gostaria muito de te dar alguma coisa, muito, mas eu só tenho uma bola de ferro incandescente para ser engolida”.

As pessoas querem ouvir sobre esperança, sobre paraísos, sobre salvação, sobre mundos melhores. Mas a primeira coisa que as pessoas precisam se dar conta, é que essa é uma platéia de condenados à morte. Ninguém aqui vai sobreviver a essa doença terminal chamada vida. Talvez eu vá primeiro... Estou com 66 anos e estão começando a acontecer coisas. Então, isso não tem muita importância. Eu estava falando com meu mestre sobre isso e disse: “Mestre, estou com medo da sua saúde, o senhor qualquer dia morre”! Ele disse: “Eu posso morrer, eu já dei a transmissão para você, você é que não pode morrer, não deu a transmissão da luz para ninguém”!


Pergunta – Se não há eu, não há nascimento e morte?

Monge Genshô - Não, não há nascimento e morte. Nascimento e morte, num bom exemplo é assim: você entra numa floresta e caminha, vê folhas caídas no chão, apodrecendo. A floresta está morrendo ou está nascendo? Nenhuma das duas, a floresta está viva! Nascimentos e mortes dentro da floresta são eventos da vida. Seu nascimento e sua morte são eventos da vida. Mais nada que isso. Você que pensa que é importante como fagulha nesse instante, mas na realidade, você é só parte da vida. “Não somos nós que vivemos a vida, a vida é que nos vive”!
(continua)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Do que é verificável


(continuação  de palestra pública)
Pergunta – Mas a pergunta é mais assim: como encontrar a resposta dentro de nós mesmos? Já que a gente compreende que não está fora, nem em livro, nem em outra pessoa?

Monge Genshô - Boa pergunta. A meditação ajuda muito, por quê? Porque quando você senta para fazer zazen, senta para meditar, joga fora o passado, joga fora o futuro, fica no momento presente, isso estabiliza a mente, e você começa a ver as coisas com mais clareza. Aquilo que parecia complicado para você de repente não é mais. É complicado porque você está agregando àquilo uma série de considerações e coisas do passado. Você carrega um enorme passado junto com você, e esse passado emaranha tudo. Então, aprender meditação é essencial para dar lucidez e clareza. É para isso que você começa praticando meditação.  Então  surge sabedoria.

Mas, esse é um sub-produto inicial da prática. Você começa a praticar e chega um momento que não há mais motivo para você estar sentado, para fazer meditação, porque você pratica, porque você está sentado? - Não sei mais. Monge eu não sei mais porque eu sento. Ah, quando alguém me dá essa resposta, gosto muito. Quando não sabe mais, ficou bom. Quem sabe você começa a pensar nos outros? Porque até agora, você sentou só pra resolver o SEU problema.

Isso acontece com alguns monges. Ah, eu quero ser monge. Para quê? Monge é aquele que começa a trabalhar pelos outros. Está trabalhando,  trabalhando e é leigo. E a gente diz assim: “trabalha como monge”. “Bom, você deve ser monge”. Este é que é o monge. No Brasil há muita gente que diz assim: “O que eu faço para ser monge”? É a primeira pergunta que ele faz. Se  tudo o que ele quer é que as pessoas façam reverências para ele é tolo, ele deveria sentir vergonha quando as pessoas fazem reverencia, porque você sabe que você não merece reverências.

Pergunta – O Senhor tocou no assunto da fé, e a fé é um produto ligado à nossa cultura cristã, então às vezes fica um pouco difícil. O que é fé sob a ótica budista? Se é que existe fé.

Monge Genshô - Posso pegar a definição de Hebreus 11.  Paulo em Hebreus diz: “a fé é a firme crença nas coisas que não se vêem e não se ouvem”. Isso não existe no budismo. Nós estávamos sentados eu, um rapaz e Saikawa Roshi meu mestre. E o rapaz perguntou para ele: “E Deus”? E Saikawa Roshi respondeu: “Bom, isso é um assunto não verificável. Se você acredita, está bem. Se você não acredita,  está bem também”.

O budismo não trata de assuntos não verificáveis. Não dá pra verificar, não se coloca. O que se coloca é sabedoria. Você não sabe nada, e eu digo para você: “meditação é uma prática construtiva, que vai levar você a mais lucidez e clareza”. Tudo o que você precisa é confiar em mim. E aí você começa. Se tiver uma experiência positiva, pode continuar. Se você chegar e disser que acha que não funciona, não tem problema. Procure alguma coisa que funcione para você. Porque na realidade nós não temos uma fé pra oferecer. Só temos experiência para oferecer.
(Continua)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

As respostas estáticas aos problemas humanos


 (continuação)
Pergunta – Existe incompatibilidade entre a ciência e o budismo?

Monge Genshô - Não posso enxergar, porque, se houver uma coisa que você comprove verdadeiramente, o budismo pode mudar de idéia a qualquer momento, porque ele não é dogmático. O budismo vem mudando através do tempo. Nós começamos com um determinado budismo e ele foi sendo adaptado.  Pai Tchang (Baizhang Huaihai; Japanese: Hyakujō Ekai (720–814 AC)) na China, mudou as regras para os monges zen, há 1 400 anos o monasticismo zen budista não segue o chamado Vinaya indiano,  em 1872, na nossa ordem e em todo o Japão, mudamos as regras, os monges podem casar. Mês passado eu fiz um casamento de um casal de rapazes. Para o zen budismo, nós temos que ser como a água, mudar como o mundo muda. Eu cheguei em um mosteiro, olhei um monge e não conseguia decidir se ele era homem ou mulher, aí perguntei para outro: “ele é monge ou monja”? e ele disse: é um transexual, mas ele quer ser mulher, então nós demos um papel para ele de que ele é mulher e pronto, ele então é monja. Ok. Isso dentro de um monastério zen budista. É claro que podemos achar virtudes na conservação estrita de regras antigas assim como na adaptabilidade e também problemas advindos de ambas as atitudes.

Mas o zen budismo está em mudança constante, não está congelado no tempo. Esta é uma virtude da ciência, a ciência pode sempre alterar o que ela pensa. Ela diz uma coisa, amanhã aquela tese está vencida e vem outra. Essa é uma coisa que a ciência pode fazer. Mas a ciência também tem um sistema de crenças. Também tem axiomas, e também tem muitos problemas, e há problemas indecidíveis na ciência, inclusive na matemática. Se vocês duvidam é só verificar o que Godel escreveu sobre os teoremas indecidíveis. É impossível decidir isso pelo uso da matemática, pronto, acabou. A matemática tem limites, assim como a linguagem tem limites.

Há uma declaração budista antiquérrima que diz que a linguagem serve para tentar explicar algo para vocês aqui, mas vocês não estão entendendo realmente o que eu estou dizendo, estão entendendo uma boa parte. Mas uma parte não podem entender, porque o único jeito de entender é experimentando. Não adianta explicar o gosto da lichia para quem nunca experimentou lichia. “Você já comeu lichia”? Não. Se eu te explicar que o gosto da lichia parece uma mistura de morango com abacaxi e uva, deu para entender? Não. Não tem como explicar ela tem que experimentar e colocar na boca. Sem palavras para traduzi-lo. As palavras são um mau instrumento que nós temos para comunicar a realidade. É aquilo com que nós podemos comunicar a realidade na medida do que o cérebro pode entender. O que não é muita coisa.

Pergunta – É lógico que para mudar um efeito, eu tenho que mudar a causa, mas a dificuldade é saber o quê fazer, como fazer, quando fazer, para mudar uma causa que está nos trazendo sofrimento.

Monge Genshô - Às vezes eu posso ajudar, outras vezes não posso, e é você mesmo que tem que resolver. Às vezes as pessoas me perguntam: eu tenho tal e tal problema. Me separo ou não me separo? Eu não sei, quer que eu assuma a responsabilidade por isso? Não sei. Você tem que considerar múltiplas coisas.. Normalmente as pessoas estão acostumadas com livros, onde há uma “solução”. Me separo ou não me separo? Não se separa, ponto, não pode.

Agora, no budismo: Monge, me separo ou não me separo? Não sei. Problema seu. E a regra? Não tem regra. Essa história de união foram os homens que inventaram. Separação, foram os homens também que inventaram. O que você pode fazer é pensar: quais as consequências realmente? É isso. Então, o budismo é um pouco decepcionante, porque queremos respostas simples, e o budismo não dá as respostas fechadas, quadradinhas, que “solucionam” tudo e nos tiram a culpa. Não, o carma é seu.
(continua)

terça-feira, 10 de junho de 2014

Esqueça as diferenças


(continuação)
Vamos para a Síria, exemplificar. Alguém me perguntou, por que é que na Síria, drusos, que são cristãos, alauítas, sunitas e xiitas se matam uns aos outros? Eu respondi: porque têm medo, porque cada grupo tem medo que o outro tome o poder, e se um grupo tomar o poder, vai esmagar os outros. Então quem tem medo  é obrigado pelo receio a pegar em armas para lutar. Esse tipo de luta só acaba quando um grupo domina todo mundo. Quando ele domina, se instala uma relativa paz, fervendo embaixo da tampa, mas, propiciada pelo domínio de um grupo. Quando esse equilíbrio se quebra como ocorreu na Síria, os grupos começam a lutar uns contra os outros, então o que fazem os homens lutarem uns com os outros? O medo.

Só que os homens gostam de levantar bandeiras, como acontece com times de futebol. Um levanta uma bandeira, outro levanta outra.  As bandeiras não significam coisa alguma, são fantasias, construções mentais. Nomes, hinos, mas eles são capazes de sair pela rua, brigar e matar o outro, porque o outro pertence à outra tribo, essa noção de separação de que eu sou diferente do outro, aquela tribo é diferente da minha, está na raiz do medo e é uma tradição da humanidade, sempre tentando exterminar  o diferente.

Vocês todos aqui são descendentes de homo sapiens. Nós acabamos com os neandertais, não foi?  Onde nós encontramos os diferentes, nós fomos  exterminando. Aqui no Brasil, havia milhões de índios, nós acabamos com os índios, porque eles eram diferentes. Os europeus importaram os negros da Africa, porque os negros estavam acostumados a uma sociedade escravocrata, em que os negros escravizavam negros,  eles próprios vendiam escravos, isso já estava estabelecido, então eles  estavam habituados a uma sociedade de trabalho forçado, e nós fizemos uma sociedade que vê o trabalho como uma coisa negativa, o bom é ser senhor, o que nada faz e se aproveita do esforço alheio. Depois nos admiramos dos resultados. Mas os resultados vêm da origem do pensamento. Porque pensamos assim no início.

Então o que Buda fez? Buda raspou sua cabeça, e todos os monges também rasparam suas cabeças, porque naquela época os cabelos mostravam a que casta você pertencia, então não temos mais castas, você entrou na sangha budista, não importa se é pária, se é brâmane, se é xátria, somos todos iguais, somos monges, somos todos iguais, vestimos igual.  Ninguém mais é diferente um do outro. 600 anos antes de Cristo, Buda admitiu as mulheres como monjas,  mestres etc, essa é a tradição budista, porque ele disse que homens e mulheres são iguais em sua capacidade de alcançar a iluminação, e ponto final.

Pensem olhando para o mundo de hoje, onde ainda existe tanta diferença entre homens e mulheres, porque nós admitimos religiões que privilegiam um lado ou outro, porque nós temos religiões em que as mulheres são sacerdotisas e os homens são de segunda classe, que isso também acontece.. Você tem uma distinção entre as pessoas, porque se criou a separação, e quando se criou a separação, você criou problema. Então a separação é que tem que ser dissolvida. Nós não podemos enfatizar a separação, os sexos, as tribos, as raças, nada disso deveria ser enfatizado, a lição de Buda é: raspe a cabeça, vista igual, somos todos iguais, a mesma coisa, esqueçam tradições e textos que tentam consolidar a diferença e justifica-la.

Mas ele incluiu mais do que isso, porque ele disse não só os homens e as mulheres, mas ele disse “todos os seres”. Todos os seres sencientes, todos os seres cientes da sua existência são iguais, no seu direito a evitar o sofrimento. Essa é a lição verdadeira de Buda.
(continua)

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Voltando ao Caminho do Meio


 (continuação de palestra em Goiânia)
Pergunta – E o carma familiar? De que forma isso é passado para as outras gerações?

Monge Genshô - Você só nasce numa família porque tem carma para nascer nesta família. Você não nasce numa família estranha a você. Você nasce numa família, numa cultura adaptada a você, com determinados pais, você se sente atraído por aquele país. É por isso que você está lá, não é de graça. Você morre aqui e agora, é provável que você nasça numa tribo de pigmeus no ex - Congo Belga? Não.  Muito difícil, muito longe de você isso. É mais provável que você nasça de novo numa família brasileira, etc, com os mesmos tipos de problemas. E aí eu pergunto: “Porque é que nós brasileiros admitimos os nossos heróis trapaceiros”? Porque é todo mundo trapaceiro. Se não fosse não aceitaria. É porque todo mundo desculpa e porque todos se estivessem numa situação semelhante se aproveitariam.  Quando as pessoas vão lá no facebook e protestam, porque vocês sabem que o facebook é um lugar especial onde só há pessoas excepcionais, honestas, que gostam de animais etc, que votam corretamente. Mostram uma face pública. É uma face ideal que as pessoas querem mostrar, mas não é verdadeira.

A verdadeira é a que o voto mostra. Se nós fossemos intolerantes, nós seríamos intolerantes no nosso voto. Como os noruegueses.  Eu estudei um tempo na Holanda, e, na Alemanha, quando trabalhava com comercio exterior  eu vi com clareza essa atitude que permeia toda a sociedade. Eu vou fazer o certo porque é o certo. Não tem nada a ver com o que eu acho ou com minha vantagem momentânea, mas porque é o certo. O Brasil não é o país do certo e do errado, é um país de pessoas pontuais ou impontuais? “Impontuais”, vocês respondem. Não é verdade. Os brasileiros não vão ao cinema na hora certa? Então os brasileiros são pontuais no cinema, na palestra, etc, por quê? Porque é uma questão de crença. O brasileiro se acha idiota de chegar na hora num lugar e as coisas atrasarem.  Mas se é um evento que começa sempre na hora, ele chega na hora.

Como nós pertencemos a uma escola japonesa, a Escola Soto Zen, dizemos: olha, a meditação começa às 19:30, chegue 15 minutos antes porque às 19:30 nós fechamos as portas e as pessoas ficam na rua. Só ficam uma ou duas vezes, depois não ficam mais. Começam a chegar na hora, porque o brasileiro é contextual, ele não quer ser bobo. Está abalada a crença de que brasileiros são impontuais? Eles agem de acordo com as circunstancias.

Pergunta – Sensei,  o que eu queria perguntar era exatamente isso, sobre este pessimismo cívico que estamos atravessando agora, de olhar que já vão se aproximando de novo as eleições, e o cenário que se apresenta não e algo que a gente possa realmente gostar. E diante disso tudo, do carma de nosso país, da formação que nós temos, sendo criados por marginais desde o começo,  e agora? Diante dessa próxima eleição, nós que tentamos errar cada vez menos, como é que nós devemos olhar?

Monge Genshô - Primeiro eu queria combater a idéia de o motivo é que nós fomos fundados por marginais, porque a Austrália foi fundada por criminosos. Ela era o lugar para onde a Inglaterra mandava os degredados,, a mesma coisa. Nós deveríamos olhar o sistema total, o sistema jurídico etc, a cultura que permeou a formação de um país para ver a sua origem. Como é que nós podemos mudar? Nós temos que mudar nossa cultura. Quanto mais brasileiros vão ao exterior e vêem como funcionam os países, melhor fica. Quanto mais nós absorvermos, quanto mais empresas estrangeiras vierem trabalhar aqui, e se recusarem a agir de forma corrupta, melhor fica. Agora se eles vierem absorver nosso sistema, pior fica. Então nesse momento eu estou fazendo uma consultoria numa empresa japonesa e nós estamos tendo alguma dificuldade com a direção japonesa e com os gerentes brasileiros, porque eu tenho que explicar, para os diretores japoneses, que os brasileiros pensam diferente. “Que não é bem assim”. Os japoneses pensam em bloco. Se um brasileiro roubou, todos os brasileiros são ladrões. Eu digo, “não não, não é bem assim, aqui cada pessoa é uma pessoa, é diferente”. Então há muitos detalhes a serem explicados.

Como nós devemos agir? Como professor budista  eu não posso perder metade dos alunos porque tenho determinado posicionamento político e a outra metade por outro posicionamento. Então o que eu posso dizer é, “mude você mesmo, dentro de você”. Esta é a tarefa do treinamento budista. Nós estamos aqui para mudar a nós mesmos dentro de nós. Lá fora nós vamos sair e agir o melhor que nós possamos, dentro daquilo que nós acreditamos que é o melhor, e se nós fizermos isso de maneira honesta, o mundo vai funcionar melhor.

Buda sempre pregou o caminho do meio, e o que seria este caminho o que ele significa? Olhe, os extremos não funcionam muito bem. Nenhum extremo funciona bem. Existem um grande conflitos no nosso tempo: existe o conflito da igualdade em conflito com a liberdade. A liberdade se opõe à igualdade porque os homens são diferentes uns dos outros. Se você prega a liberdade de empreender, liberdade econômica, de agir, de falar e tudo mais, você tem um tipo de sociedade mas ela rapidamente fica cada vez mais diferente, porque umas pessoas são mais talentosas e outras menos.

Não adianta você dizer que é injusto o Neymar ( jogador de futebol) estar ganhando muito. Ele tem um talento especial que está valorizado, é isso, essa é a condição dele. Esse é o mundo da liberdade. Agora, se eu disser assim: eu quero o mundo da igualdade, e todos os jogadores vão ganhar a mesma coisa, não importa quem joga melhor. Rapidamente todo mundo para de se esforçar e os Neymares desaparecem porque não adianta se esforçar, porque se eu me esforçar eu ganho a mesma coisa. Então a liberdade e a igualdade trabalham levando em conta o egoísmo humano. Essa é a grande luta que nós tivemos. Aqueles que tentaram a igualdade a todo custo, saíram matando, para fazer com que a igualdade funcionasse. Vamos matar os proprietários, e todos aqueles que se opõem a nós.

Outros, que tentaram não a igualdade a todo custo mas a liberdade, redundou em que? Enormes desequilíbrios, pessoas que não eram competitivas dentro das sociedades ganhando muito pouco, vivendo muito mal, e outros ganhando muito. Então na verdade, o mundo funciona melhor quando há um certo equilíbrio. Então eu queria voltar ao ensinamento de Buda, o “Caminho do Meio”.

Os governos, as instituições, os países, têm que lutar para, diminuir a injustiça equilibrando as chances. Mas, não se pode levar isso a tal ponto que todo estímulo desapareça. Então, este equilíbrio sutil é a grande vitória de países como a Noruega, Finlândia, que são sociais democracias capitalistas, tudo junto, do Norte da Europa. Eu acho que o Brasil deveria pensar nesses termos, mas ele não consegue se decidir muito bem, então ele ora vai para um lado, para um extremo, ora vai pra outro e como os grupos não sabem pensar muito bem por ter instrução baixa, o pensamento filosófico no Brasil não se consolida e acaba parecendo uma luta entre facções, entre classes, e as lutas nunca redundaram em coisa muito boa. Redundaram na realidade em grande desgaste, por quê?
(continua)

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Entre trapaceiros e eremitas


(continuação)
Pergunta – E essa pessoa que se suicida, como fica o carma?

Monge Genshô - É uma má ideia. Do ponto de vista zen budista, o suicídio não é uma boa solução, porque você simplesmente congela o momento presente e projeta este carma para o futuro, com alguns agravantes. Você agiu em seu beneficio, “escapou” do problema, jogou grandes sofrimentos em cima de sua família, você cria uma série de outras circunstancias, mas dentro da cultura japonesa podemos falar que, quando alguém se mata, resgata sua família, porque dentro da cultura existe este aspecto. Você cometeu um crime, toda sua família está profundamente envergonhada e quando você se suicida, a sua família está liberta do olho social. O olho dos outros perdoa a família porque você se matou portanto há algo diferente aí.

 Mas isso é um aspecto cultural. Eu estava falando com um grande amigo que é psicanalista e  estávamos comentando o fato de que nossos heróis culturais são trapaceiros, Pedro Malazarte, Macunaíma, Saci Pererê, são todos enganadores, então aquele que mente bem no Brasil, é aplaudido, as pessoas até votam nele depois. Enquanto que no Japão é o contrário, se você fizer alguma coisa errada, sua vida acabou. Não só a sua, mas o seu filho será o “filho de um trapaceiro”. Então quando você se mata você resgata seu filho. É um carma um pouco melhor, porque este suicídio tem um olho compassivo com outras pessoas, mas o suicídio que é para que eu escape dessa situação, sozinho, esse suicídio é uma má ideia cármica.

Você vai continuar e ainda vai continuar com o impulso de solucionar coisas desta forma, porque não é a melhor solução.

Pergunta – Esta teoria cármica, ela não é muito determinista?

Determinismo seria uma doutrina que diz que existem condições que tornam tudo algo determinado e inescapável. O carma não é assim qualquer pessoa pode mudar seu carma. Você tem determinado carma e começa a fazer uma coisa de outra forma, seu carma está mudando. Eu era um executivo, um diretor de empresas, e agia como executivo, ainda trabalho para me sustentar como consultor, no mundo corporativo e eu entendo o mundo corporativo, ele tem uma lógica, mas no momento em que eu me tornei monge,   comecei a pensar em outras coisas, o meu carma mudou.

Eu escrevi um livro a este respeito, “O Pico da Montanha é Onde Estão os Meus Pés”, e ele serve para as pessoas que trabalham. Numa orelha eu coloquei o monge, na outra, eu coloquei o executivo. Eu sou realmente um executivo e sou realmente um monge zen. Neste livro eu tento mostrar que você pode trazer a realidade da vida espiritual, para a vida do trabalho, para a vida diária. Algumas vezes as pessoas me perguntam: “O senhor é monge, é muito fácil sua vida, para o  senhor é tudo fácil, abandonou tudo”, e não é verdade. Mesmo porque eu não ganho dinheiro como monge para sobreviver, eu ganho dinheiro como consultor. O trabalho de monge é um trabalho que eu dou, é outra ótica.

Então, é possível você transformar sua vida levando a vida espiritual para a vida normal, e se isso não fosse possível, o budismo seria falho. Se ele só funcionasse para eremitas nas montanhas, ele seria inútil. No Zen nós temos muitas piadas a este respeito, como o do eremita que meditou 20 anos e desceu da montanha e chegou na aldeia, dizendo que estava iluminado, que havia se libertado de todas as paixões. Então ele foi ao mercado e alguém pisou no seu pé e ele ficou furioso, gritou com o homem, e então se deu conta, de que a prática espiritual dele só funcionava  lá na montanha.  Porque prática espiritual verdadeira é aqui, aqui e agora é que é difícil.
(continua)

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Uma sociedade que tem vergonha


 (continuação de palestra)
Carma é isso, você provoca mudanças, e as mudanças retornam. Por isso tem sentido o trabalho budista. O que nós estamos fazendo? Estamos tentando mudar os homens por dentro. Se nós mudarmos os homens por dentro, a sociedade pode mudar. Um país que recebeu grande influência da escola ZEN budista foi o Japão. O Japão já foi um país muito ruim. Lá pelo Sec. XV, eram guerras civis, feudos contra feudos, assassinatos, crueldade, assaltantes nas estradas, isso era o Japão. Depois de 1.600 houve paz e se instituiu uma educação budista generalizada e isso durou quase 300 anos. Hoje vocês vêem, acontece um tsunami como em Fukushima, e não houveram saques. E as pessoas entravam na fila e pegavam só a sua parte, ou dividiam sua parte com os outros. Os comerciantes abaixaram os preços, e ninguém se preocupou em proteger os bens, porque ninguém saqueou. O país mudou de mentalidade. Mas quem mudou de mentalidade? As pessoas.

Tivemos no Japão ano passado um grande número de assassinatos. Aqui no Brasil temos 140 por dia. Eles tiveram 11 durante o ano, foi muito ruim. O ano inteiro, foram 11 assassinatos, o que é ruim, porque em 2006 foram 4. Então na realidade, as pessoas precisam é de educação interna, de mudança de valores, então nós temos uma grande tarefa: mudar pessoas para a compreensão sobre o carma, então poderemos mudar nossa sociedade e o mundo. E nós não queremos o paraíso, nós queremos salvar todos os seres que estão no inferno, este é o ensinamento que eu queria deixar para vocês hoje. Agora vamos abrir para as perguntas.

PERGUNTAS

Pergunta – No Japão,  uma pessoa se mata a cada 30 minutos. A que isso se deve?

Monge Genshô - É verdade. Isso se deve a uma distorção na sociedade japonesa. A sociedade se transformou na sociedade da vergonha, as pessoas têm muita vergonha, então quando elas são pegas fazendo alguma coisa errada ou quando elas não são bem sucedidas, elas se matam. Não sei o que aconteceria no Brasil se políticos que fossem pegos fazendo coisas erradas se matassem. Mas poderia haver uma mortalidade muito grande, nosso falha é o oposto. Mas eu considero isso um problema da sociedade japonesa com certeza. Mas não é um defeito budista. É um defeito desse aspecto da vergonha levado ao seu mais alto grau.
(continua)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Resgatar o último nos infernos

(continuação de palestra)
 Sobre inferno e paraíso as pessoas dizem: “se eu me comportar bem, vou para o paraíso, se eu for um santo, vou para um mundo maravilhoso”. Ontem um rapaz me perguntou isso na internet: “se a gente cumpre as regras, numa religião que promete o paraíso, para onde eu vou?” Eu respondi: “Para o paraíso”. Mas o paraíso acaba, o paraíso é a paixão. Ele começa, tem mérito para isso, mas os méritos se esgotam, porque o paraíso também é impermanente. Então na realidade, procurar por mérito atingir o paraíso, significa ignorar todos os outros seres. Então eu sou santo, vou para o paraíso, vocês pecadores, fiquem aí, vão para o inferno, condenados, e encho a boca para condenar todos os outros, que não fazem parte da minha solução que é perfeita, a única que promete o paraíso.

Estes tempos, duas senhoras bateram na minha porta e tentaram me explicar que elas tinham uma salvação, um paraíso, e eu não queria ofendê-las, e elas disseram que só 144.000 escolhidos iriam para o paraíso, os outros todos estariam condenados e que eu teria a chance de fazer parte desses 144.000 escolhidos. Aí eu desisti e disse assim: “Minhas senhoras, vejam, eu sou budista e para um budista, na realidade, eu não quero fazer parte dos 144.000 e ver todos os outros no inferno. O objetivo de um budista é salvar todas as pessoas que estão no inferno”.

Então, o voto do Bodhisattva é: “Mesmo que os seres sejam inumeráveis, eu faço o voto de libertá-los todos”. Significa: EU não vou me libertar, enquanto houver uma só pessoa no inferno, porque eu vou lá dar a mão paro último o mais abjeto, mais terrível, mais cruel dos criminosos, porque eu quero salvar o último dos homens que estiver nos infernos, porque eu não posso usufruir do paraíso enquanto houver um homem no inferno. Esta é a ótica budista. É claro que elas desistiram de mim.

Mas, na realidade meu sentimento é compassivo. Como alguém pode achar que estará feliz, sendo do grupo dos privilegiados? É como os brasileiros que não se sentem felizes por estarem comendo e em suas casas enquanto outras pessoas estão na rua  sem casa ou passando fome. Você não pode ser feliz com isso. Você  pode ser feliz na Noruega, onde o país dividiu o dinheiro do petróleo entre todos os habitantes, de forma que cada habitante na Noruega hoje tem um patrimônio equivalente a um milhão de dólares, aí dá pra ser feliz, porque você não se sente injusto em sentar na mesa e comer, porque todos os outros estão comendo. Não é verdade?

Eu então diria que todos os sistemas no mundo funcionariam muito bem se os homens fossem diferentes. Não importa qual fosse o sistema. Se fosse o sistema comunista, em que todos dividem tudo entre todos, em todos os países onde isso foi feito todo mundo relaxou no trabalho, porque afinal de contas os outros estão trabalhando, e os países empobreceram e quebraram, se os homens fossem diferentes, eles se esforçariam também, e é por isso que não funciona. Mas o sistema comunista funciona muito bem dentro de um mosteiro budista, pois todos dividem tudo e continuam se esforçando e ninguém é proibido de sair. Então não é o sistema em si que é errado, são os homens. É como o sistema capitalista também, que pode ser maravilhoso se todos pensarem em todos. Acabamos de dar o exemplo da Noruega, eles pensaram em dividir as riquezas de seu país, porque é de todo um povo, não de um pequeno grupo, não de um grupo que se aproveita e que enriquece sozinho. Então as diferenças estão dentro dos homens.  (continua)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Repetições sem fim



 (continuação da palestra)
Nós temos que substituir as crenças por experiências. Então o budismo é experiencial. Por isso o Zen faz o que nós vamos fazer amanhã, primeiro você senta nesta almofada de frente para a parede e descobre QUEM é você. Descubra o fundamento da sua existência. Onde você estava antes dos seus pais terem nascido? Quem eu sou realmente, além desse nome e forma? Quem eu sou além de Joana, Pedro, Jairo? Quem eu sou? Se eu puder saber quem eu sou, então posso engolir o universo. Mas enquanto eu estiver acreditando na minha individualidade, no meu “eu” como uma coisa sólida, eu estou muito perdido, porque eu tenho mais uma construção, mais uma ilusão, criada pelo funcionamento da minha mente. Eu “sou” aquilo que eu acredito, aquilo que meu pai me disse. Minha mãe me deu o nome de José, então sou José. Quem é você? José. Não, José é um rótulo. Eu quero saber quem é você, além desse nome. Eu sou isso que você está vendo, é verdade? E se eu retirar esse braço, será menos você, ou você continua aí? Não, eu continuo aí. Então você não é seu corpo, porque eu tirei o braço e você continua. Você nem diminuiu...quem é você fora do seu corpo, fora do seu nome, fora de tudo o que as pessoas acreditam que são? Eu sou advogado, doutor, operário, consultor, qualquer coisa, quem é você além dos atributos? Quem é você de verdade? Essa é a pergunta que tem que ser respondida.

À medida que nós vamos andando na vida nós vamos criando carma. Nós já somos produtos de carma, porque nós não estaríamos aqui se não houvesse um efeito anterior. Existe algum efeito sem causa? Não. Qualquer efeito que exista, tem uma causa. Se vocês estão sentados aqui, existe uma causa pregressa. Então, de onde veio essa personalidade, esse apego, esse desejo, essa tendência, essas coisas que vocês sentem desde a infância? Foram criadas aleatoriamente, ou por acaso são efeitos do passado? A lógica diz: são efeitos do passado. Então há continuidade nas existências. A essa continuidade na existência, vamos chamar CARMA.

A onda cármica, ela não carrega nome, identidade, não tem passaporte, não tem sobrenome, não sabe quem é, no entanto se manifesta aqui e nasce, e aí mamãe dá um nome, e você vai descobrindo aos poucos, olhando pra dentro de você, “eu sou assim, eu tenho tendência pra isso, eu tenho tendência para aquilo. Você é uma grande cozinheira, não é? Mas de onde veio este talento? Não foi sempre assim, desde pequena? De onde veio? Surgiu assim? E quando você senta uma criança talentosa num instrumento musical,  você olha o prodígio e diz: “Como pode? Como é possível isso?” Você acha que aconteceu ali como um milagre, ou que tem uma causa pregressa? Como Mozart podia compor musicas aos 5 anos de idade? Como? Então é evidente para nós que existe continuidade de manifestação cármica, e vocês são continuidade de carma muito velho, senão não seriam seres humanos, seriam seres mais primitivos.

Agora, vocês vão continuar repetindo sempre as mesmas experiências? Porque é isso que nós fazemos na vida. Nós repetimos experiências sem fim. As pessoas fazem uma coisa, depois repetem o mesmo erro de novo, depois de novo. É ou não é? Nós não somos assim, seres apaixonados? Nos apaixonamos  uma vez, aí acaba aquele amor e a gente sofre. Aí o que fazemos? Nos apaixonamos de novo.  O monge ouve muito essas coisas, porque senta alguém na frente e diz: “Estou sofrendo muito”... Às vezes o sofrimento é tão grande que eu choro junto. Porque eu sinto que dói, porque também já aconteceu comigo. Mas eu sei uma coisa com certeza: é só a gente esperar 2 anos. E a mesma pessoa vem e eu digo: “E aí, e aquele relacionamento?” E ela responde: “Ah, ainda bem que eu me livrei daquela coisa horrorosa, só foi problema aquilo para mim, mas agora estou com uma pessoa...” Até o próximo desastre. Porque nós somos assim, nós somos repetidores de experiências, porquê? Porque não mudamos o nosso carma, aí repetimos.
(continua)

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Qual a bengala a que você está agarrado?


Então nós temos por exemplo, o altar budista. O altar budista é diverso do altar de outras religiões? Não. As flores representam a impermanência. A vela representa a luz. A água está ali porque Buda morreu com desidratação, e nós queremos dizer: “se eu estivesse lá eu lhe daria água”. A estátua poderia ser um pedaço de madeira, de pedra, cerâmica, qualquer coisa. É Buda? Claro que não é Buda. Ela só está ali, para me lembrar, que se ele realizou se libertar e era um homem como eu, então eu também posso me libertar. Ele é um exemplo de que eu posso me desfazer das ilusões e parar de me agarrar em crenças e partir para um pensamento mais limpo, sem me agarrar em nada externo.

Então Buda não era um deus, não era um salvador, um profeta e na realidade, eu posso tirar a estátua dele dali. Na verdade, não haviam estátuas de Budas, nos altares, durante os 300 primeiros anos da história do budismo. Ninguém se atrevia a colocar uma estátua de Buda num altar, o que se colocavam eram impressões de pés ou uma árvore, porque ele havia se iluminado embaixo de uma árvore e diziam: “ele passou por aqui”.

As estátuas de Buda só aparecem depois do chamado “Período Gandhara”, e este período aconteceu na região que hoje engloba o Afeganistão. Ela era um reino grego, e como os gregos haviam invadido a Índia e dominaram aquela região, os gregos influenciaram o budismo para que o budismo produzisse estátuas, e as primeiras estátuas de Buda são gregas. Nariz grego, feitio grego, etc. Então, a existência da estatuária budista, é uma influência do ocidente grego sobre o budismo, assim como a existência do estoicismo na filosofia grega  tem uma influência do budismo.

Essa conexão cultural entre o budismo oriental, o oriente e o ocidente normalmente é ignorada, porque nós na faculdade estudamos uma história que isola o oriente, é como se ele não existisse, e toda a história partisse da Grécia e de Roma, é a chamada “História Eurocêntrica”. E ninguém sabe quase nada aqui do que aconteceu na Índia, na China e no Japão, nesses séculos anteriores, quando nós sabemos que a civilização chinesa é mais antiga que a civilização grega, mais antiga que a civilização romana, só não é mais antiga que a civilização egípcia e babilônica.

Então, o que representa o altar para nós? É só um mecanismo de lembrança, porque as pessoas gostam de altares. Nós precisamos realmente de altares? Não, não precisamos de altares. Nós reverenciamos a lembrança do seu ensinamento e a verdade de que nós somos homens como ele, porque ele tem a água na frente dele porque morreu desidratado, mas morreu porquê? Porque comeu em casa de um ferreiro, passou muito mal, teve um enfarto agudo do mesentério, e teve uma diarréia sanguinolenta. Eu sempre pergunto nas minhas primeiras palestras: “vocês já tiveram diarréia?” Então vocês são como Buda! Vocês podem se iluminar.

Essa história passou através dos tempos para nos dizer isso: não era um ser sagrado que subiu aos céus numa nuvem. Era um homem como nós que morreu com diarréia. Essa é a mensagem fundamental do budismo, lógica, dura, na realidade. Às vezes eu estou falando e pessoas se queixam e dizem: “Monge Genshô parece muito cético, muito terrível, ele tira todas as coisas que nós nos agarramos”. Mas essa é a verdadeira tarefa do Mestre ZEN. O Mestre Zen quer dizer: “Qual é a bengala em que você está se apoiando? Qual é a crença, a ilusão em que você está se apoiando? Ah é essa? Estou tirando”.

Aí tirei a bengala, tirei a muleta, tirei o tapete debaixo dos pés e, quando não resta nada, e o homem olha pra baixo e vê que não tem mais chão onde pisar, então chegou um grande momento, porque só aí o homem pode ambicionar sabedoria. Enquanto ele estiver agarrado em crenças, ele não pode ambicionar sabedoria, porque a crença  é o contrário do saber. A crença é aquilo em que eu me agarro sem saber nada. Eu tenho apenas “fé” que é assim. Mas, se eu souber que é assim, se eu tiver a experiência, então eu não preciso de crença.