segunda-feira, 30 de abril de 2018

Esquecer-se de si mesmo


Nós ouvimos as pessoas dizerem que nós temos uma missão aqui, nossa missão na Terra, mas o Zen vai dizer que não há essa missão que você não é importante, que você é só consequência de carma e que não existe nada tão importante assim para ser alcançado. Ao mesmo tempo, nós nos sentimos amarrados a essa cela, a essa prisão, e mesmo que as portas sejam abertas, nós não queremos sair, porque essa prisão é tudo que conhecemos, é tudo que amamos como a nossa própria identidade. E quando perguntamos a alguém quem ele é, ele responde sobre as qualidades de sua cela: eu sou assim, eu sou assado, eu tenho tal nome, eu tenho tal genealogia, tenho tais títulos, então aqui na minha cela tem os cursos que eu fiz, a minha aparência está aqui nesse retrato, e tudo é a cela, ela é tudo o que você olha, é a prisão. Então, nós nos sentamos em zazen, como disse Dogen, “para nos esquecermos de nós mesmos”, mas esquecer de si mesmo é abandonar a cela, é ver que não tem significado você se agarrar a esse nome e forma, e esta é a única maneira em que você pode sair da cela e engolir o universo, sendo participante do próprio universo e compreendendo todos os seres. O único jeito de abrir a porta é esquecer de si mesmo. Por isso, Dogen disse que "estudar o Zen é estudar a si mesmo, e estudar a si mesmo é esquecer de si mesmo, e esquecer de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas".

[Trecho de Palestra proferida por Monge Genshô Sensei]

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Shikantaza: Abandonando a Sensação de Propósito


Sentir a realidade de que até então vivemos aprisionados em nós mesmos é difícil, porque esse amor próprio, essa nossa paixão pela nossa prisão nos perturba vastamente. Então, nossa técnica de meditação, técnica mais usada no zen, chama-se shikantaza, que é uma técnica em que você se senta, assumindo-se sem propósito. Você não deve se sentar com ambição, ou procurando a iluminação, ou para obter um tesouro que o diferencie dos outros. Você tem que abandonar a sensação de propósito, a sensação de missão, por exemplo, tão frequente.

Isso significa que estudar o Zen é compreender esta cela, o que ela é, e o que ela significa em termos de aprisionamento. Esquecer-se de si mesmo é abandonar suas estantes de títulos, seus retratos, suas identidades, todas as coisas a que você sempre se agarrou, abrir a porta e de repente ver o mundo luminoso, maravilhoso, que existe além da porta, e enxergar que esse mundo é você mesmo.
[Trecho de Palestra proferida por Monge Genshô Sensei]

quarta-feira, 25 de abril de 2018

A Prisão


Bem, há muitos métodos de fazer o que chamamos meditação. Há métodos preparatórios, de observação do corpo, com o propósito de nos tornarmos conscientes. Há métodos com recitações que nos dão uma âncora e, mais do que isso, um som harmônico que pretende nos sintonizar com o todo. 

Há também métodos voltados a algo que está fora de nós, e eles conduzem a um grande engano, um sentimento de separação, porque é necessário chegarmos a noção, ao sentimento de que entre nós e fora de nós não existe distância alguma, que todo fora está dentro e o que está dentro pertence a esse fora. Nós somos altamente perturbados pelo fato de que nos sentimos separados, por causa da nossa mente, do funcionamento das nossas formações mentais, da nossa consciência que é dependente dos nossos sentidos: nós abrimos os olhos e vemos tudo fora, separado de nós. Então, é necessário criar um insight, uma visão de que na verdade estamos como que aprisionados dentro desse saco de pele, cheio de ossos e órgãos. Nós nos agarramos a este aprisionamento como um prisioneiro que amasse a sua cela, e não quisesse dela sair. Nossa libertação é altamente dependente do fato de que temos que abandonar esse amor à nossa prisão, a essa prisão que vivemos e sentimos por estarmos aqui, como seres, e estendermos nossos sentidos a um mundo que nos rodeia.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

O Budismo é Não-Teísta


De certa forma, quando alguém fala em Deus, não se pode dizer que o budismo é ateu, e, por esta razão, eu prefiro a resposta “o budismo é não-teísta”. É outra resposta. Ele não fala nem considera sobre esse assunto. Hoje, como eu estava falando para teístas, e não queria ofender ninguém, eu disse que o budismo tem uma teologia apofática e isso significa que ele não fala nada sobre Deus. Já houve um ramo do cristianismo com teologia apofática. Quando você lê Meister Eckhart, por exemplo, vê que ele diz: “Deus não existiria se eu não tivesse querido”. Isto é uma declaração e tanto para um monge católico. “Deus não existiria se eu não tivesse querido” - faz parte dos sermões alemães, vocês podem ver, são muito interessantes para quem tiver interesse nessa comparação. 

Eckhart é praticamente contemporâneo de Dogen, pois nasceu logo depois da morte deste e viveu na Alemanha. Seus sermões, suas declarações, parecem ter a marca do próprio zen budismo. Depois a Inquisição mandou queimar seus livros, não durante sua vida, mas depois. E é como se Dogen tivesse se manifestado em plena Alemanha do século XIII, Sacro Império Romano-Germânico, como frade dominicano e tivesse ensinado. Esses sermões ele fez para freiras. Vocês podem encontrar na internet. Leiam se tiverem interesse, são de um ser muito realizado espiritualmente.

[Trecho de Palestra proferida pelo Monge Genshô Sensei]

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Liberdade de Não Acreditar



Do ponto de vista do zen, o aluno pode dizer para o professor: “eu não estou acreditando nisso”, e o professor só argumenta, porque é isso que Buda fez. É perfeitamente lícito que o aluno questione uma ideia qualquer do budismo ou do professor. Inclusive, isso existe sob forma ritualizada, chama-se Mondo. Nós nunca realizamos aqui porque não temos uma corporação de monges, mas um dia vamos fazer. O professor fica com o kyosaku na mão, o aluno vem andando e faz a sua pergunta. Logo em seguida ajoelha na frente do professor. O professor responde e bate ritualmente com o kyosaku em seu ombro e ele recua de costas agradecendo. Esse é o ritual do Mondo. O professor não sabe quais são as perguntas. Então você pode fazer a pergunta mais louca que quiser.

Eu me lembro de fazer Mondo com Saikawa Roshi duas vezes. Na primeira vez perguntei: “Eu ouvi falar sobre carma, me diga, de onde veio o primeiro carma?”. E ele respondeu: “Quando você descobrir, me conte”. Na outra vez eu perguntei: “Por que Bodhidharma tinha barba?”. E ele respondeu: “Nem ele sabia”. (risos). Na cerimônia pode-se fazer qualquer pergunta, “por que a lua é redonda?”, pode fazer.

[Trecho de Palestra proferida por Monge Genshô Sensei]

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Diálogo sobre Carma (Parte 2)



Monge Genshô: Você está pensando que só os homens geram novo carma para novos homens?

Pergunta: Nesse caminho que a nossa discussão está levando, eu diria que talvez o carma talvez vá evoluindo. Há alguns milhares de anos nós éramos milhares, hoje nós somos bilhões.

Monge Genshô: Mas há uns 70 mil anos existiam 6 espécies de seres humanos.

Pergunta: Sim.

Monge Genshô: Quem eram?

Pergunta: Eram hominídeos também.



Monge Genshô: Eram hominídeos também... Florensis, sapiens, neandertais, não é? E a base anterior é outro tipo de ser. Você conhece pessoas que você olha e pensa que se parecem mais com um animal? Elas se comportam como um animal, só pensam em comer, dormir e não são muito diferentes do meu cachorro. Não pensam, não raciocinam, não é? Quando veem alguma coisa que não gostam, rosnam. Não há pessoas assim? E por isso você olha e pensa: “parecem animais”. Eu poderia pensar assim: “deve ser a primeira vida humana dele”, porque é essa a tradição budista mesmo: conseguir um nascimento humano é uma coisa muito rara e difícil. E então você imagina quantos milhões de vidas existem e não são humanas. E adiciona a questão do tempo: quanto tempo leva? Porque, para quem morreu, o tempo não existe. Um segundo ou cem anos são a mesma coisa, como é para quem perdeu a consciência. Você desmaiou, você sabe quanto tempo foi que você ficou desmaiado? Você acorda e pergunta. E a pessoa diz assim “poxa, você ficou desmaiado 5 minutos”, “você ficou desmaiado 5 dias”, “você está em coma a 3 meses”, tem gente que já acordou depois de 10 anos. Por que você imaginaria que só homens renascem homens? Além disso, existem seres humanos que decaem tanto na sua condição que você só pode imaginar que ele renasça como? Se for se manifestar de novo, vai se manifestar como? Esse indivíduo, esse criminoso, psicopata, capaz de atrocidades rindo, como ele pode se manifestar como ser humano para ser cuidado por papai e mamãe? Ou ele vai renascer e só pode se manifestar numa condição muito, muito ruim? Na cosmogonia budista, inclusive, existe uma divisão em reinos. Reino dos infernos, dos fantasmas famintos, dos animais, depois os homens. Então existe uma escala. Depois semi-deuses e devas. Dadas as condições de manifestação, você pode se manifestar em circunstâncias horríveis. Se é uma criatura de ódio e raiva, só pode se manifestar em um mundo de ódio e raiva. Então você se manifesta naquele mundo, onde só tem guerra, só tem ódio, ninguém consegue solução nenhuma porque toda solução é sempre pegar uma arma e matar o outro. Essa é uma situação infernal, e é extremamente sofrida, mas são as pessoas que constroem para si mesmas, e suas novas manifestações cármicas têm estas características. A lógica é esta. Mas isso de cosmogonia não é artigo de fé. Alguns professores dizem que essa divisão é didática, ou uma alegoria; outros dizem que é real. Ou seja, não existe no budismo uma coisa consolidada que diga “as coisas são exatamente assim”. Porém, nova manifestação cármica é inescapável, se você pensar que existe carma e que o carma tem uma coesão, cujo argumento eu demonstrei aqui pelo fato de as pessoas serem diferentes, então há nova manifestação. Se há nova manifestação, ela é consequência do carma anterior e leva suas características e marcas distintivas.