quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Zazen


Uma vez que você percebe que está pensando, quando não deveria estar fazendo nada, e retorna ao zazen, os pensamentos que apareciam de forma tão clara diante de você como se fossem imagens numa tela de TV, desaparecem de repente, como se você tivesse desligado a TV. Resta apenas a parede à sua frente,Por um instante... é isto. Isto é o zazen. No entanto, os pensamentos novamente aparecem por si próprios. Novamente você retorna ao zazen e eles desaparecem. Nós simplesmente repetimos isto; isto é chamado de kakusoku (consciência da Realidade). O ponto mais importante é repetir este kakusoku bilhões de vezes. É desta forma que deveríamos praticar o zazen.(TEXTO) Voltar. Este voltar para o momento presente é realmente difícil por causa de todos os conteúdos com que nós nos alimentamos. Por isto na vida real nós deveremos evitar também as coisas que entram na nossa mente e a alimentam de forma errada. São os filmes, os programas de TV, os vídeos etc, as conversas e todas as coisas que não são boas. Vocês já sabem que não são boas e são perturbações, conteúdos que não constroem felicidade para você, mas nós somos muito viciados neles e então nós vamos procurá-los porque eles são prazerosos ou meramente interessantes. Até que você tenha uma mente imperturbável, você tem que evitar estas situações. Quando você tem uma mente que não deixa entrar os sentimentos você pode assistir a um filme vendo apenas o filme, sabendo que é meramente fantasia e não sentindo abalos. Se você não os tem, se os sentimentos conseguiram ficar de fora, então você está pronto para ver. Agora enquanto você assistir e ele o influenciar então a sua mente não está livre ainda. Você ainda é alimentado, arrastado por aquelas coisas. Quando você vê alguém no filme, um personagem que está procurando vingança e torce por ele, enquanto você sente esta satisfação no lugar dele a sua mente não é livre. Você é arrastado por aquilo que está vendo. Então se você é arrastado por aquilo que está vendo tem que evitar tudo o que arrasta. Por isto no sesshin a gente faz um modelo. Este modelo é não alimentar a mente com nada. Então zero notícias, zero leituras que não sejam o Dharma, zero conversas, zero músicas, nada. Os sons que nos chegam já são suficientes quando vocês estão sentados no zazen, já tem de madrugada os animaizinhos que correm aqui em cima do telhado, depois os cantos dos galos, as cigarras. As coisas estão bem quando você ouvir estes sons e sentir grande alegria como se fossem presentes. Estar aqui parado, sentado, que lindo o som desta cigarra começando a tocar, parece um prazer. Aí você está bem porque você está realmente ouvindo a cigarra. Se tivesse uma televisão na sala nós ignoraríamos a cigarra, nós não estaríamos aqui de verdade.(Comentario de Monge Gensho sobre texto de Uchiyama Roshi)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Daishinkon


Comentários sobre: Os Três Elementos Essenciais da Prática do Zen por Yasutani Hakunn.

O primeiro dos três elementos essências da prática do Zen é uma fé vigorosa (daishinkon). Isto é mais do que uma simples crença. O ideograma para kon significa raiz e para shin, fé. Assim a frase implica uma fé que é firme e profundamente arraigada, imóvel como uma árvore imensa ou um grande penedo. É uma fé, ainda mais, não maculada pela crença no sobrenatural ou na superstição. (TEXTO) E aqui algo para nós distinguirmos estas palavras, crença e fé. Quando nós acreditamos em algo sobrenatural ou extraordinário ou sem nenhuma evidência, isto é uma crença, a crença muitas vezes é a fé degenerada, então acredita-se em coisas só porque elas foram ditas por uma autoridade ou porque está num texto ou porque fazem parte de um axioma qualquer da nossa religião. Fé no Buddhismo não tem este significado é isto que nós vamos estudar agora. (COMENTÁRIO). O Budhismo tem sido freqüentemente descrito como uma religião ao mesmo tempo racional e de sabedoria. Mas é uma religião, e o que faz dele uma religião é este elemento de fé, sem o qual seria apenas uma filosofia. (TEXTO). Só raciocinaríamos, e muitas vezes dado este aspecto extremamente racional do Buddhismo, de questionamentos, os textos de Budha mesmo, são assim sempre, demonstrativos, argumentativos, mostrando contradições, destruindo crenças, então às vezes o Buddhismo é olhado como uma filosofia e aqui então mestre Yasutani está dizendo não, é uma religião, porque existe um elemento de confiança...

P. Não poderia ser também uma filosofia?

R. Vamos um pouquinho mais adiante...sim, claro, poderíamos dizer que tem construção filosófica, numa definição de Edward Conze o Buddhismo é um pragmatismo dialético de fundo psicológico, então ele está dizendo que ele é prático, pragmático, pretende funcionar, é dialético porque tem este elemento filosófico de discussão, de procura de uma verdade racional e métodos de fundo filosófico, psicológico porque ele pretende usar a mente como alvo, uma espécie de psicologia bastante diferente da psicologia tradicional que nós conhecemos, mas com elementos de contato. Nós podemos ver que os métodos, por exemplo, da psicologia e seus objetivos são diferentes dos objetivos e métodos Buddhistas, por exemplo, no Buddhismo nós não queremos adaptar o homem ao mundo, mas normalmente o objetivo na maioria (não todas é óbvio) das linhas psicológicas é adaptar para que funcione bem no mundo. O Buddhismo não tem este objetivo, por exemplo, uma psicóloga pode trabalhar dentro de uma unidade militar para que os soldados sejam bem adaptados a sua função, e pode tratar, por exemplo, os soldados que sofrem de culpa por terem matado ou de angústia, ou de medo ou qualquer coisa assim e se for bem sucedida na sua tarefa terá sido uma boa psicóloga, o Buddhismo vê este objetivo como limitado, na realidade ele quer um outro homem e esse outro homem, na verdade, se recusaria a ser um agente de morte...

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Desistir mas ficar


Foto do final do sesshin de fevereiro no Templo Busshinji, Marcos do grupo de Londrina é o segundo da direita para a esquerda à frente, recebeu de Saikawa Roshi (centro) seu rakussu e o nome do Dharma de Daitetsu.

P. Quando estamos fazendo kinhin fazemos gasshô primeiro para todos ou para a parede?

Monge Genshô: Faz primeiro para o lugar e depois para o centro. O significado é assim: você faz gasshô para o lugar em que você vai sentar e de certa maneira você cria um respeito por ele, você se volta sempre no sentido horário e faz gasshô para o centro. Um dos significados é eu perturbo os outros no meu zazen com ruídos quando me mexo, então já peço desculpas, respeito a tolerância dos outros para comigo e faço gasshô para a Sangha. É por isso que fazemos para o centro. Muito do que a gente faz é voltado para a Sangha. O último cumprimento também quando nós fazemos prostrações de manhã e de noite é para a Sangha. São as três jóias: Buda, o Dharma e a Sangha. Buddha é este ideal búdico, personificado numa pessoa que conseguiu a iluminação. O Dharma o ensinamento, a maneira, o por quê, o método para conseguir, nem melhor nem pior, um método apropriado para nós que praticamos e a Sangha o grupo de pessoas que sofre junto, que nos dá força, a gente enxerga neles as mesmas coisas que em nós. Eles param, eles ficam cansados, eles não agüentam mais, mas eles continuam. E isto é maravilhoso porque não agüentam mais, mas continuam. Por isto que ninguém pode desistir do sesshin.

P. O objetivo de sentar em zazen é ver a própria mente cada vez mais claramente e aceitar os estados desta mente Eu percebo na minha prática que quando eu sinto dor física isto me atrapalha. Mudar de posição é benéfico?

Monge Genshô: Você tem que administrar a sua prática . Se a dor é moderada ela ajuda a ficar aqui, se ela chega a um ponto e você não pensa em mais nada, só pensa em mudar, está sofrendo, mudar de posição é o aconselhável. Não sentamos em zazen para sofrer. Sentamos em zazen para a nossa mente não para o nosso joelho. Vocês podem trocar de posição assim: tente não trocar, tente agüentar mais um pouco, depois troque de posição, passe para seiza, depois sente no banquinho e se não dá termine o sesshin sentado na cadeira. Abdicar de todo orgulho e sentar na cadeira. É bom inclusive aceitar que foi derrotado, que não tem mais importância. É bom dizer eu não agüentei. É muito bom.Esta mente de eu desisti é excelente. Você desistiu, mas ainda está aqui na sala do Zendô. Pode até se levantar e ficar em pé na frente da almofada em sashu em pé até melhorar e aí sentar de novo. Então vá administrando o processo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Situações invasoras


P. Não devemos dar oportunidade a certas situações para não sermos arrastados por elas. Mas às vezes a oportunidade não pede licença, é invasora. O que fazer?

Monge Genshô: Como no texto de Uchiyama Roshi pode-se evitar uma situação de escolha, posso evitar um filme de vingança. Agora se estamos numa situação na vida em que isto aparece inevitavelmente vamos ter que saber lidar com esta situação com a melhor mente que possível e a melhor mente é a mente que identifica. Eu estou com raiva. De onde vem a minha raiva? Ela vem da minha mente. Não é esta pessoa, mas é a minha mente que produz este sentimento. Os sentimentos são muito poderosos, sentimento de raiva, de ciúme, de inveja. Todos estes sentimentos podem surgir. Se nós deixamos ou cultivamos, eles tomam conta de nós. Por isto treinamos na almofada sentados de frente para a parede porque quando eles surgem, a pessoa não está ali, nós só imaginamos aquela pessoa de que nós não gostamos. Aí ela surge e aí é a nossa oportunidade de transformar, identificar este sentimento na minha mente. Eu vou voltar para aqui agora, só para a minha respiração. Não vou julgar. Foi bom, ruim que isto acontecesse, não vou lutar contra a minha mente, não vou tentar substituir este pensamento por um pensamento bondoso. Não vou fazer isto. Vou voltar para a realidade última, agora, sem raciocínio e não vou me sentir culpado por isto que surgiu. Simplesmente descartar, deixar cair. Assim praticamos no Soto. Existem outras formas de prática no budismo, viáveis também, de visualizaçâo, de treinamento em sentimentos bons. Elas também são funcionais, mas não são a prática do Soto Zen. Praticamos descartando, nos livrando. Não criamos outras coisas. Uma prática difícil, mas bem efetiva.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Mapa da nova sede em Florianópolis


Mapa da nova sede, agora com 3 banheiros, zendô, templo, biblioteca e loja, quarto de monges e vestiário, cozinha, copa, depósito de materiais, lavanderia, estacionamento para carros gratuito a 5o m, ar condicionado. Próximo ao centro.

Pergunta – Uma coisa em que eu penso muito é sobre o consumo da carne. Não é mais somente uma coisa de propaganda. Antes eu pensava que era um hábito de família. Mas se formos observar a pirâmide alimentar dos nutricionistas, a base é carne e derivados de animais. Se for ao médico, ele lhe dirá para comer carne. Meu pai, por exemplo, ficou anos sem comer carne, então teve um problema de saúde, e o médico o assustou tanto, que ele voltou a comer carne. Existe algo além da mídia, é algo da ciência equivocada mesmo.

Monge Gensho – O que existe é um sistema de crenças, e ele irá variar. Por exemplo, nós sabemos que nos mosteiros Zen budistas, desde o tempo da China - ou seja, há mil e quatrocentos anos - se desenvolveu uma cozinha vegetariana, porque não se podia matar e na China a mendicância era proibida. O resultado final dessa cultura é que no Japão, por exemplo, o consumo de carne é uma coisa recente, tem apenas cento e poucos anos. Antes disso, comer carne era uma coisa absurda. Comiam bastante peixe, mas jamais carne de caça ou de bois e porcos. O resultado disso foi a longevidade; a tradição nos mosteiros Zen é de longevidade com lucidez, e dificilmente você vê alguém gordo, pois ali comem muitos vegetais e grãos.

Aluno - Parece que todo o modelo de consumo leva para a carne, não existe um financiamento de pesquisa contra o consumo de carne.

Monge Gensho – Existem outras correntes que questionam isso, já temos literatura a esse respeito. O máximo que posso oferecer é meu exemplo pessoal: não como carne há mais de sessenta anos, meu pai era vegetariano, fui criado numa casa onde até o cachorro era vegetariano, pois naquela época não se dava ração e ele comia o resto da nossa comida. E lembro que quando viajávamos e deixávamos o cachorro com minha avó, quando voltávamos, ele estava gordo. O cachorro pode viver sem carne, mas é essencialmente carnívoro. Sua arcada dentária é completamente diferente da nossa, por exemplo, que é semelhante à dos macacos frugívoros, ou seja, que comem frutas. Não temos dentadura típica de um animal carnívoro; nossa mandíbula é diferente também, tem movimentos laterais que os carnívoros não tem. Mas o budismo não está focado nessa questão.

Aluno – Eu sei, só quis colocar uma questão minha, uma dificuldade que tenho. Meu projeto é ir tirando a carne, é uma coisa minha...

Monge Gensho - Muitos budistas se dirigem para isso por um sentimento de compaixão ou por responsabilidade planetária, porque setenta por cento do desmatamento é para virar área de pasto. Se a humanidade não comesse carne, sobrava comida amanhã, porque a maior parte dos grãos cultivados vira ração para o gado. Existem os extremos. Existem animais que comem vinte e seis quilos de grãos para a produção de um quilo de carne. Por isso a carne é tão cara. Então, como existe esta tradição nos mosteiros, muitos budistas têm essa tendência de ter uma responsabilidade social sendo vegetariano. Mas o budismo jamais defendeu essa posição como um item necessário, sempre se focou na mente, “um pragmatismo dialético de métodos psicológicos”, como disse Edward Conze. É isso que o budismo é, um método de libertação pessoal, mas não com regras desse tipo com relação ao mundo. Isso tem que ser desenvolvido internamente...

Aluno – Desenvolvido e evitado, né? Eu vejo por mim, pois no meu caminho de apenas dois anos no budismo, já vejo a necessidade de mudar meus hábitos alimentares, mas não pela saúde física, e sim pela compaixão. Eu tenho sonhado com bichos, tenho acordado com um sentimento de compaixão por bichos, pois nos sonhos eu sou sempre muito amiga dos animais. Então está sendo quase inevitável...

Monge Gensho – Agora, isso é uma mudança cármica, não é? Na realidade é uma mudança de carma, a pessoa vai mudando. Mas isso tem muitos aspectos na vida, em muitos aspectos você pode ser impactado por isso, mas nós só estamos aqui nesse tipo de mundo, nos manifestando como seres humanos, porque somos criaturas de desejo, de apegos e profundamente egoístas. Nós somos assim. A solidariedade e a compaixão pelo outro é algo que a gente desenvolve, e se você desenvolver muito terá dificuldade de voltar para esse mundo; como existem muitos mundos, quem sabe você renasce numa terra pura onde a prática seja mais fácil? Essa é uma escola que existe dentro do budismo – “a terra pura”. A terra pura é um lugar onde a bondade é mais freqüente. Renascer num lugar assim não me parece ser um mau objetivo; é um bom objetivo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O crescimento ilimitado


Aluno – O Seikan San colocou algo no blog dele sobre o self que é muito interessante...

Monge Gensho – Porque é um sistema de crenças. Esse vídeo em questão fala da manipulação das massas através da publicidade com o fim de criar necessidades e desejos. Um dos temas abordados é de como foi feita a publicidade para fazer com que a mulher fumasse, para que ela pudesse fumar principalmente em público, o que na época era um tabu. Dessa forma, muitas coisas foram criadas para convencer as pessoas a consumirem determinados produtos. Uma lógica da economia e funcionamento das empresas está embasada no fato de que precisamos consumir para que a economia cresça, para que haja mais empregos, mais produção, etc. É comum todos ficarem muito felizes ao vermos na imprensa a afirmação de que o país esta crescendo, mas quando acontece de não haver crescimento, é quase uma calamidade pública. Na verdade, deveríamos nos perguntar se um crescimento assim é possível para sempre, mas isso é impossível. Por que está tão embutido em nossas cabeças que temos que crescer sempre? Por que a economia dos países tem que crescer sempre? Por que existem sempre mais pessoas a serem incorporadas a uma sociedade mais afluente? Existem países onde a população é muito pobre, não come o suficiente, então sim.

Em um planeta muito limitado, nos tornamos muito numerosos, muito mais do que o planeta suporta, e temos uma lógica de crescimento econômico infinito, pensamos que é sem fim. Um exemplo típico é o da China, que adotou a civilização do automóvel; basta fazermos alguns cálculos para sabermos que lá não pode haver dois carros por família como é, por exemplo, o padrão nos EUA. Não é possível, não haverá onde os carros circulem. Chega um momento limite naquilo que podemos fazer ou consumir. A indústria convence as pessoas a comprar alimentos de uma determinada forma, a consumir cada vez mais alimentos, e sempre mais calóricos. De repente, todos começaram a ficar gordos, no entanto, identificamos isso como doença. Para amenizar a situação, agora temos uma epidemia de operações para redução de estômago. Isso tudo é muito ilógico. Se olharmos fotografias de mil novecentos e trinta para trás, os brasileiros eram todos magros. O que aconteceu, como mudamos tanto? O consumo de arroz e feijão no ano passado diminuiu no Brasil, estamos comendo mais, mas não é arroz com feijão; o que aumentou foi o consumo de bolacha, cerveja e salgadinhos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Ilusão


Ilusão
Ainda que a Verdade seja uma utopia, eu a persigo.
Ainda que a Felicidade seja impossível, eu sonho com ela.
Ainda que o Amor seja perecível, eu o cultivo.
Ainda que os filhos sejam do mundo, os crio como se fossem meus, para sempre.
Ainda que tudo que fizermos seja esquecido, cuido do que faço.
Ainda que eu não possa salvar o mundo, dôo a minha parte.
Ainda que a vida seja finita, vivo como se fosse eterna.
Ainda que Deus possa sequer existir, eu acredito. E rezo com fé.

Ao conhecer a ilusão, sou livre,
consciente dos meus limites.

Não me pensem descrente, hipócrita ou incoerente.
Minha coerência está na escolha:
Faço assim porque quero.

Valéria Chalegre


Ainda sobre a Ilusão
Ainda sobre a ilusão, quero dizer:
Desconfie de tudo que parece ser, imita, simula.
Desconfie do senso comum.
Ainda que saibamos que a vida é um jogo,
Que às vezes se ganha e às vezes se perde,
Que se quiser ganhar, portanto,
Terá que estar disposto a perder,
Não aceite as regras.
Encontre o ganho onde aparentemente só há perdas.
Descubra o real por baixo do verniz das aparências.

Valéria Chalegre

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Viver como leigo ou como monge?


Temos uns amigos que estão tentando migrar para a Austrália, estamos observando o que pode acontecer; talvez eles consigam. A grande diferença será para seus filhos pequenos, eles sofrerão, não é fácil fazer isso. Nossos antepassados fizeram; gente muito corajosa.

Aluno – Mas fizeram por causa da situação...

Monge Gensho – Sim, a situação era horrível, estava insuportável. Eu conheci um monge Zen que era dentista no Brasil e foi para o Japão, depois de dez anos voltou ao Brasil e tentou se estabelecer novamente no país. Ele disse que quando era monge no Japão não precisava pensar em nada, porque a instituição estava toda organizada, não precisava se preocupar com a conta da luz, da água, com nada. No Brasil, tinha que arrumar dinheiro para morar, comer, pagar água, luz. “Não agüento mais, como vou viver no Brasil?” perguntou-se ele. O resultado é que retornou ao Japão. Era impossível para ele viver no Brasil, ele havia se tornado monge na instituição. Aqui é diferente, pois somos monges que temos que trabalhar, é muito mais difícil ser monge agora, nessa situação. Talvez em algumas décadas seja diferente, talvez tenhamos nossa instituição, o monastério. Talvez haja, no futuro, a possibilidade de morar no monastério, de só realizar algumas tarefas, como, por exemplo, quem for morar no templo irá trabalhar na cozinha. A pessoa terá onde comer e dormir, não será rico, mas também não será pobre; nem irá pensar nesse assunto.

A essência do que estamos falando talvez seja, “nós temos a capacidade de mudar nosso carma?” Temos, mas não é fácil, precisa haver grande empenho e esforço. Ocorre, ao se tomar uma decisão, do carma mudar muito. Quando aceitei ser monge, isso mudou muito minha vida. Não mudou inteiramente, mas mudou um aspecto: me deu um ideal. Se não fosse isso, eu estaria simplesmente trabalhando e tentando ganhar dinheiro. Talvez sentisse que a vida fosse vazia, porque a gente precisa ter ideais para sentir a vida mais plena.

Pergunta – Existe um ditado que diz que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Isso significa que a razão é mais forte do que o coração? Ou às vezes isso é invertido?

Monge Gesnho – Observando seres humanos ao longo da vida, tenho constatado que o coração é mais forte que a razão. É raro que a razão esteja acima.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Decisões


Pergunta – Quanto é de destino e quanto é de livre arbítrio?

Monge Gensho – De livre arbítrio é muito pouco. Essa história toda demonstra mais ou menos isso. Você está numa corrente de carma, é como se estivesse num rio arrastado pela corrente. Essa corrente é muito forte e você não consegue voltar a subir o rio novamente, não consegue ir para a margem; às vezes, acontece de surgir um remanso e você até poderia se deslocar para a margem e sair do rio. Há, como essas, poucas ocasiões em que isso é possível. Normalmente todos ficam na torrente e vão sendo arrastados por seu próprio carma sem conseguir escapar. Existem momentos em que você pode fazer escolhas que mudam sua vida, digamos que o rio se divida em determinado ponto, e que com um pouco de esforço você pode ir para um dos lados. É comum surgir o pensamento, “ah, se tivesse escolhido o outro caminho...” Aquele momento teria mudado a vida inteira. Mas normalmente você está no fluxo da própria vida e não consegue facilmente sair dele, você fez uma filha há alguns anos, não é? Agora ela teve um filho; você consegue escapar de ser avô? Mesmo que você quisesse, mesmo que tentasse, pensando, “não, não vou prestar atenção, não vou me ligar a esse neto, não colocarei nenhuma paixão nessa relação e irei morar no Butão”, ainda assim, você seria o avô. Você até poderia fazer isso, mas eu aposto que não faria.

Aluno – Por isso que eu penso que quando a gente vai tomar uma decisão, tem que estar muito seguro, muito certo sobre o que vai decidir.

Monge Gensho - E como estar certo? Você não sabe. Você só sabe depois. E mesmo assim, é um saber suposto, porque você não sabe realmente como seria se você não tivesse tomado a decisão. Temos uns amigos que estão tentando migrar para a Austrália, estamos observando o que pode acontecer; talvez eles consigam. A grande diferença será para seus filhos pequenos, eles sofrerão, não é fácil fazer isso. Nossos antepassados fizeram; gente muito corajosa.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Escolhemos uma vida?


Pergunta - E onde entra o que chamamos de intuição?

Monge Gensho – A intuição é, na realidade, um conjunto de coisas. Sentimentos, percepções do passado, um conjunto nebuloso dentro de sua mente que lhe dá uma sensação a respeito de algo. Se fossemos tabular as questões intuitivas, você veria que seus resultados são aleatórios. Algumas vezes dá certo, outras, dá errado. É mais de acordo com a lei das probabilidades mesmo. Aquilo que consideramos intuição também não é confiável. Estou dizendo que o coração não é confiável, a razão não é confiável, a intuição não é confiável, que é melhor deixar o fluxo da vida correr, observando e agindo como você puder. Mas é muito importante não tentar impor aos outros nossas crenças ou convicções, sentimentos, ou razões. Você não sabe.

Pergunta – Então, escolhemos uma vida, vivemos uma vida?

Monge Genshô – Na realidade, vivemos uma vida arrastados por condições cármicas, é o carma que nos conduz. Outro dia estava conversando com minha filha e disse, “poxa, sempre volto à questão de fazer algum empreendimento... tenho mais de sessenta anos e continuo me envolvendo em algum empreendimento”. Não consigo escapar desse carma. Isso ocorre desde os meus vinte anos, e hoje sou monge mas sempre tem algo nesse sentido; agora é o monastério, antes era o restaurante para subsidiar a sangha; tem sempre um empreendimento. E os empreendimentos naturalmente perturbam, porque há tarefas e muitas coisas envolvidas. Isso me faz lembrar o momento em que eu quis ser monge. Naquela época estava trabalhando como consultor e viajando demais – fazia mais de duzentas viagens de avião por ano. Sentia-me muito cansado e com dores nas costas. Um dia, parei no Rio de Janeiro e conversando com um monge Zen, reclamei da dor nas costas. Como ele fez acupuntura, me perguntou sobre o que eu andava fazendo, então respondi que fazia duzentas viagens de avião por ano. “Mas, afinal, o que você quer?” Foi a pergunta que ele me fez e que é, na verdade, um grande questionamento. Algum tempo depois, procurei Igarashi Roshi e disse-lhe que eu queria ser monge. Eu pensei que sendo monge estaria escapando da minha vida de empresário e consultor, consequentemente, das viagens. Ele então me perguntou, “por quê?”, ao que respondi “minha vida é tumultuada e acredito que o melhor caminho para mim seja o de ser monge”. Então ele me disse, “você está muito enganado, não vai solucionar nada. Eu sou monge e viajo de um lado para o outro, quero construir um mosteiro em um lugar, ajudar uma pessoa em outro, tenho que pegar avião, tenho que viajar, reunir dinheiro para fazer as coisas. Meus problemas são iguais aos seus”. Voltei para Porto Alegre e um amigo que trabalhava junto comigo conseguiu uma sala e me pediu que o ensinasse a fazer meditação. Depois de dois anos já tínhamos uma sede: fechamos uns boxes no estacionamento e fizemos um zendo. No terceiro ano Igarashi Roshi me ligou perguntando o que eu estava fazendo e disse que iria me visitar para me ordenar monge. O resultado é que além de continuar a fazer tudo o que eu já fazia, ainda tive que assumir mais o compromisso com uma sangha. Então eu penso que isso é carma mesmo, não tem jeito. Isso é freqüente, você julga que vai escapar da vida e pensa “ah, se eu saísse daqui e fosse para um monastério me livraria de todos os problemas da vida!” Não é assim, você conseguiria treinar determinadas coisas, mas sua vida continua com você. Eu tenho essa convicção: meu caminho é ter família, ser monge, trabalhar. Muito provavelmente morrerei assim.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quem tem razão


Pergunta – Razão e emoção formam uma dualidade?

Monge Gesnho – Acho que devemos questionar a razão também. Aquilo que chamamos de “razão”, muitas vezes é governado por um sistema de crenças. Nós acreditamos que algo seja pior, ou melhor. Como temos um sistema de crenças, damos a ele razão. Mas podemos estar enganados.

Pergunta – Qual a conduta a seguir?

Monge Gensho – Muitas vezes também me pergunto isso. Seguidamente me questiono sobre o que fazer, sobre qual seria a melhor conduta em certa situação. Quando temos filhos ou netos, é comum nos indagarmos: “e agora, qual seria a melhor maneira de agir, o que dizer?” Muitas vezes não estamos tão certos. Mais tarde, anos depois, o filho nos diz: “tu deverias ter sido mais duro comigo”. E pensávamos estar sendo duros demais. É muito freqüente que um filho adolescente nos acuse de sermos muito severos e que anos mais tarde ele mesmo diga que deveríamos ter sido mais duros. É muito difícil saber o que fazer ou o que dizer. O melhor é cultivarmos uma mente mais livre, descondicionada, que realmente nos permita dizer “não sei.” São muito perigosas as pessoas que têm certezas e que sabem muito nitidamente o que é melhor. Às vezes, existe nas famílias aquela pessoa que tem razão e que quer impor sua vontade sobre a família inteira. Ela se considera sempre certa, tem seu conjunto de crenças, e quer, por força, que todos as aceitem. No fim, isso pode ser muito ruim. Como é que se sabe o que é melhor? Como você pode impor aos outros o que pensa ser o melhor? Você não sabe. Temos muitos exemplos de pessoas que se tornaram grandes em alguma coisa contra o que seus pais tinham se oposto acirradamente. Há pouco tempo, li na autobiografia de Elias Canetti que sua mãe lutou denodadamente para que ele tivesse uma profissão, que estudasse algo que fosse realmente útil, para que não ficasse em fantasias de literatura. Ele então se graduou, fez mestrado e doutorado em química, para obedecer a sua mãe. Elias Canetti foi prêmio Nobel de literatura; nunca foi químico. Mas sua mãe tinha absoluta certeza de que sabia o que era bom para seu filho e morreu em conflito com ele, de certa forma. Como podemos saber o que é realmente bom, o que é certo? Voltando à questão relativa a coração e razão, podemos dizer que o que pensamos ser a razão, pode estar errado. Uma mente aberta seria, portanto, mais conveniente.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A ponte do meio balde - cont


Todas essas histórias, desde a da ponte do meio-balde até a dos chipanzés, têm relação com nossa atitude de integração e respeito com toda a natureza e com tudo o que nos cerca. O primeiro preceito budista diz “Não matar”. Isso não significa, somente, não matar seres humanos, mas tem relação com tudo o que nos cerca. Meu primeiro professor do Zen dizia que esse preceito inclui não matar uma pedra, simplesmente porque também uma pedra pode ser danificada. Se não houver um motivo plausível, não temos o direito de destruir qualquer coisa ou de causar qualquer sofrimento. Esse é um questionamento que cada um deve fazer com relação a si mesmo e sua vida no mundo.

Quando penso em moralidade, penso que o budismo não tem uma moral no sentido de regras que temos que seguir, porque as regras já existem. Não é uma questão de moral no sentido convencional, como questionar-se sobre a roupa a vestir ou de como nos comportamos; não se trata de uma moral. Trata-se de uma ética em relação ao sofrimento, logo, todo ato que cause sofrimento aos outros deve ser questionado, o que engloba gestos, palavras e em última análise, pensamentos – neste caso, porque o pensamento leva a que se cometam as palavras e os atos que irão gerar sofrimento.

Por isso Buda disse que o caminho budista é ser senhor de sua mente. Somente sendo senhores de nossas mentes seremos capazes de evitar sofrimento aos outros e a nós mesmos. Através do descontrole de nossa mente é que começamos a sofrer, porque temos sentimentos que nos perturbam e esses sentimentos é que têm que ser transformados. Mas não basta policiá-los, pois o simples ato de controlar pode falhar, e então, fracassamos. O que temos que mudar é o sentimento real, visto que, ao proceder assim, palavras e gestos serão automaticamente alterados. Mas isso tudo é extremamente difícil, então, para tentar transformar nossa mente através de um esvaziamento dos condicionamentos de que ela está plena, fazemos zazen.

Zazen é a técnica cuja prática permite que nossa mente se transforme. Mas, na trajetória de nossa vida diária, a cada pequeno ato de pensamentos, gestos ou palavras, nós podemos nos questionar: “por que eu falei assim?”, ou, “por que eu disse isso?”, “por que agi dessa forma?”, “por que pensei assim?”, “de onde vem esse sentimento?”, “o que ele é?” Isto é a prática budista. Quando dizemos que somos praticantes, deveríamos dizer que somos praticantes para nos tornarmos senhores de nossas mentes, para não deixar que a mente corra livre e desembestadamente, sentimento após sentimento. Hoje mesmo comentei com minha esposa que um dos piores conselhos que já ouvi na minha vida foi “siga seu coração”. Não devemos seguir os sentimentos tais como eles surgem, porque eles não são bons conselheiros. Os sentimentos são paixões e as paixões nos conduzem de forma desordenada. Na realidade, ser senhor de sua mente significa ser senhor de seu coração.

Palestra do Monge Genshô - íntegra aqui

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A ponte do meio balde


A PONTE DO MEIO-BALDE

Em Eihei Ji há uma pequena ponte sobre um riacho que se chama Ponte do Meio-Balde, porque Dogen ia até lá e recolhia um balde de água, cuja metade derramava de volta. Esse era um ensinamento seu, ele dizia que devemos sempre devolver parte. Ensinava, também, que se algo sobrasse da água usada, nunca deveria ser arremessado para longe, mas colocado, cuidadosamente, perto de nós, na terra.
Esses pequenos gestos têm grande significado no Zen, pois contêm um grande ensinamento. Todas as coisas são dignas de serem tratadas com reverência, por isso, em nossa prática quotidiana, em nossas pequenas ações diárias, devemos proceder da mesma forma. O Brasil é um país com abundância de recursos, proporcionalmente à sua população. Sempre pensamos que poderíamos abusar da natureza com grande largueza, e até hoje, muitas das cidades brasileiras não têm redes de esgoto; lançamos tudo nos rios, no mar, cortamos florestas, depredando, assim, a Terra. Destruímos nosso patrimônio, pois sempre tivemos, no Brasil, essa noção de que os recursos naturais nunca vão acabar. Assim, não nos importamos, porque se onde estivermos não nos servir mais, vamos adiante e usamos o que há em outro lugar.
Em relação aos animais, costumamos pensar, na nossa civilização, que eles não são seres dignos de respeito e que não têm sentimentos. Como exemplo de quão longe já chegou esse tipo de pensamento, há uma declaração de um general americano da guerra do Vietnã que ficou célebre, pois disse que “os orientais não dão o mesmo valor à vida que nós”, para justificar que não era muito importante se alguém morresse. Num famoso documentário, Corações e Mentes, aparece esse general fazendo essa declaração, e em vez de algo ser dito, vemos a imagem de uma mãe vietnamita, chorando a morte do filho. Se tal declaração nos parece hoje absurda, quanto aos animais, estamos bastante convictos de que não possuem sentimentos da mesma forma que nós.
Caiu-me nas mãos um livro que se chama A Era da Empatia. Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Segundo esse livro, experimentos com animais começam a demonstrar cabalmente o contrário. Em uma destas experiências, é colocado um rato numa pequena gaiola onde, para comer, tem que apertar uma pequena alavanca. Uma vez que esteja condicionado a isso, é colocada junto à gaiola dele uma gaiola com outro rato ligado a fios. Cada vez que o primeiro rato aciona a alavanca para pegar comida, o segundo rato recebe um choque e grita de dor. Ao perceber que, para comer, o outro tem que sentir dor, o rato pára de se alimentar. Isso significa que ele se importa, de alguma maneira, com a dor do outro. Os primatas têm comportamento assim também, muitas vezes foram registrados atos altruístas, não somente com relação a seus companheiros de espécie, mas, também, com relação a outros seres, como no caso de um chipanzé, que foi observado pegando um pássaro caído, colocando-o num galho de árvore e abrindo suas asas. O que significa isso? Ele sabe que se trata de um pássaro e sabe como esse animal se comporta. Há, portanto, registros de animais salvando vidas de outros animais e de seres humanos, às vezes até com sacrifício da sua própria vida. Isso indica que nós não somos tão especiais em termos de sentimentos e que não podemos dizer que os outros não têm os mesmos sentimentos ou que não sofrem como nós. Se até os animais têm comportamento de empatia, solidariedade e consolo, sendo capazes de consolar os que sofrem, não é surpreendente que os seres humanos tenham desenvolvido esse tipo de comportamento.

Trecho de palestra ministrada por Monge Genshô `A Sangha de Florianópolis, íntegra aqui

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Ciência e o zen


P. Esta a questão de que as palavras são duais e não funcionam, sinto que o zen conseguiu burlar este problema usando as palavras para transmissão, mas jogando com esta dualidade.Isto ninguém conseguiu fazer. A ciência e outras filosofias não conseguiram fazer. Isto é uma das coisas fantásticas do Zen. As palavras são imperfeitas, mas os métodos conseguiram mudá-las.

R.Agora veja também que o texto que eu li é um poema, quantas vezes os mestres Zen usam poema ou arte para expressar aquilo que está acontecendo.

P.Antes de usar as palavras tem o pensamento e a intenção, então não seria a intenção que conta para ter valor a palavra?

R. Não estamos mais no mesmo assunto do que é a linguagem. Estamos no assunto do julgamento acerca dos atos, palavras e pensamentos e isto existe dentro do budismo a intenção está em primeiro lugar. A intenção diz muito sobre o karma que é gerado, criamos karma muito de acordo com a intenção. Isto é verdadeiro.

P. Conhecimentos milenares estão sendo estudados e desvendados pela neurociência, que explica, por exemplo, que determinados estímulos visuais ou olfativos geram vibração em determinadas ondas do cérebro. Estas percepções mentais que estão sendo desvendadas parecem infinitas.

R O interessante sobre este aspecto é que por mais que nós avancemos neste tipo de análise ela tem as limitações que a anatomia tem para examinar o amor, muitas vezes aparecem coisas interessantes como: eletro-encefalograma de um monge em meditação, ah, ondas teta, muito interessante, mas isto nada diz essencialmente sobre a experiência espiritual em si, é apenas uma aparência grosseira, uma coisa que aparece, vamos dizer assim, é como nós vermos uma pessoa chorando de emoção e pegarmos suas lágrimas num vidrinho, levarmos num laboratório e dissermos, agora eu vou entender a emoção e examinamos a lágrima e vemos que é salgada e que na realidade é parecida com a urina em muitos aspectos. Agora o que isto me disse sobre a emoção do chorar? Estas são as limitações das análises deste tipo.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Palavras e poesia


P. Quer dizer então que nós fazemos parte deste imenso fractal?

R. Sim, isto mesmo. Nós fizemos isto, esta idéia do fractal que é que cada pequeno pedaço repete a fórmula anterior, como numa árvore em que cada pequeno galho é como uma árvore inteira. Imaginamos isto muito mais amplo em todo universo e nós vamos ver que as bordas de uma folha seguem as mesmas leis de distribuição matemática da costa de um país e quando vemos isto então percebemos esta imensa unidade de concepção, de expressão que tem o nosso universo. É que normalmente não conseguimos entender.

P. O dualismo então seria gerado pela pobreza das palavras?

R. Sim, pelas pobrezas da linguagem que estão implícitas na linguagem como ferramenta mas ao mesmo tempo são a única maneira que uma linguagem tem para funcionar.

P. Não seria possível existir uma linguagem perfeita?

R. Não, uma linguagem perfeita não, pela própria característica da ferramenta linguagem. Uma outra maneira de entender isso é assim: um anatomista pode examinar, abrir um homem, examinar e descrever com perfeição seu coração, seus nervos, seu cérebro, seus neurônios até a medula, mas isto não diz nada sobre a sensação do amor porque esta análise está num nível inferior, você precisa subir um degrau de expressão para ir para o degrau superior. Por exemplo, as palavras permitem a poesia, mas a gramática não explica a poesia. Um dicionário não explica a poesia, a poesia está num outro nível. Ela está fora deste nível de análise inferior, tudo no mundo é assim, nós temos níveis diferentes, quando nós tentamos analisar a espiritualidade com as palavras não pode funcionar, é impossível funcionar.

P. Neste caso uma poesia seria menos dual, uma boa poesia?

R. Sim, uma boa poesia seria. O que a poesia realmente faz? Ela cria paradoxos, ela burla as leis da própria linguagem, usa as entrelinhas, usa coisas para poder expressar um sentimento, mas só entende o sentimento que está na poesia aquele que já o vivenciou, pegue uma poesia e leia uma poesia de dor de cotovelo para uma criança que nunca teve isto, pegue uma música desta sensação que é talvez a mais presente na nossa música popular brasileira, pegue esta música, uma letra de boa qualidade e leia para uma criança com uma boa compreensão de 12 anos, mas que nunca tenha vivenciado isto, ela não tem muito significado para ela, mas quando ela ficar adulta e sofrer o mal de amor e você colocar a música no rádio e ela ouvir então ela sente a emoção, ela chora, ela entende. Por que? Porque as palavras não explicam. Você pode ser “recordado” dos sentimentos através das palavras.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Tudo dentro de nós


P. O mundo é real, existe. Mas a minha mente cria uma representação do mundo. Então a mente pura, evoluída transcende esta representação?

R. Transcende e é isto que é a visão clara, a iluminação. Você vê a realidade última, o mundo tal como ele é, com as suas formas realmente, mas você vê o que estas formas são, inclusive você mesmo e os outros, que são manifestações daquela realidade última e não coisas separadas por si mesmas, e sim coisas todas interdependentes em uma teia, então você pode olhar para uma folha de papel (é célebre esta explicação) e ver que não é só uma folha de papel. Na realidade é madeira moída com cola, mas o que é madeira? Sol, água, chuva, carbono, material de antigas estrelas que já desapareceram porque neste nosso universo esta é a segunda geração de estrelas. Só por isto temos elementos pesados. Então tudo isto está aqui porque o carbono dessa folha de papel vem daí, dessa origem anterior, compreende? Então todas as coisas são interdependentes entre si e uma mente iluminada vê esta interdependência com clareza absoluta. Então não existe mais aquilo que é individual. A iluminação não é uma coisa miraculosa, fantástica, ela não é isto. Ela é uma percepção além das delusões, porque quando nós olhamos vemos só uma folha de papel, não vemos tudo. Mas se conseguíssemos ver tudo aí sim seria muito diferente, aí todas as coisas que nos perturbam também deixam de importar, já não são mais as mesmas coisas, tudo se alterou na nossa percepção, por isso em certos momentos a ação iluminada é incompreensível. A ação iluminada é incompreensível porque o homem iluminado que sofre uma agressão sente profunda compaixão pelo agressor em vez de sentir em primeiro lugar a dor da sua agressão, porque ele se sente o agressor também porque ele também é o agressor. Vocês sentam aqui nas almofadas e os piores defeitos e pensamentos do mundo surgem nas suas mentes. Nós temos toda a maldade que a humanidade é capaz de executar, dentro de nós. Se não manifesta pelo menos em potência está lá dentro de nós. Isto às vezes é difícil de aceitar porque pensamos que somos bonzinhos, mas nós não somos bons, somos homens, basta ver no zazen.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Apenas juntamos os cacos


Pergunta – Qual o problema do erro? Existe, de fato, problema em cometer erros?

Monge Genshô – Os erros acontecerão, isso não é importante. Por exemplo, eu chamo o Jisha e lhe digo: “O altar de Buda está sujo”. Ele estará errado se disser, para se desculpar: “Pois então, o pessoal da limpeza não veio ontem e hoje o encarregado faltou”. Se o altar de Buda está sujo, ele deve pegar um pano e limpá-lo rapidamente, sem desculpas ou questionamentos. A atitude correta é essa, sendo incabível tentar encontrar o encarregado ou responsável que não exerceu corretamente sua função. Não perguntamos quem quebrou o vaso, juntamos os cacos e varremos o chão. Perguntar ou procurar pelo culpado é enaltecer o ego, que é separação.

Pergunta - Uma das coisas que a gente percebe em qualquer individuo é o surgimento de uma certa vaidade. Assim como na mente de zazen surge o pensamento, pode surgir a culpa?

Monge Genshô – Como pode haver culpa se somos todos uma unidade? Se alguém se mexe no zazen, quem está se mexendo? Suponhamos vinte pessoas na sala e uma que se mexe: quem está se mexendo? Todos. A Sangha está se mexendo. A Sangha não está imóvel. Não é aquela pessoa que não está imóvel, é a Sangha. É essa a visão. Não há culpa ou não culpa, simplesmente, está acontecendo, é essa a visão que temos que entender. Você vai para um sesshin e alguém deseja algum cargo, alguma função. Não deve existir o desejo por alguma coisa. Se alguém receber alguma incumbência, deverá cumpri-la; se não receber função alguma, não deve sentir-se sensibilizado por isso, pois essa é a pior demonstração de ego. Temos que atentar para o fato de que cada um deve cuidar de si mesmo. É isso que está sendo visto. Vocês percebem que isso é diferente do que vemos no mundo, onde todos querem se destacar e ter sucesso. Na Sangha não pode haver o desejo de destacar-se. Há um ditado japonês, que provavelmente veio do zen, que diz: “Um prego que se destaca será martelado”. E se não se destaca? Ótimo. Ele está no mesmo nível de todos os pregos, não está fazendo nada para tornar-se diferente, está executando exata e tão somente sua função, que é segurar a madeira. As regras são essas, não se justifique, não explique, não compare.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Justificar-se


Pergunta – Existe algum tipo de prática para durante o dia, com os olhos abertos?

Monge Gensho – Durante o dia? Claro. Experimente andar na praça durante o dia e olhar para as árvores e entre em samadhi. Por que não? Existem muitas oportunidades de prática durante o dia para samadhi, para olhar para sua mente. Você precisa observar sua mente. Por que eu agi dessa forma? Qual o sentimento que me leva a agir dessa forma quando alguém me diz alguma coisa? O que me leva a justificar-me constantemente? Por que as pessoas fazem isso? Por exemplo, uma pessoa escorrega e quase cai. O que acontece? A reação, em geral é: “Ah, mas esse chão molhado, sem uma placa!”, ou “Ah, essa calçada mal feita!”. A culpa é sempre dos outros, nunca é você que não prestou atenção ao chão molhado e não caminhou mais cuidadosamente. Sempre nos justificamos e culpamos os outros. Isso, nos mosteiros, é facilmente aprendido, pois nenhuma justificativa é permitida. A justificativa é sempre a defesa do ego, mesmo que você tenha razão. No mosteiro, se você for repreendido injustamente, você simplesmente diz: “hai”, ou seja, “sim”, mesmo que o autor do erro tenha sido outra pessoa. Ser capaz de fazer isso sem se justificar, aceitar toda a injustiça, isso é realmente importante, mas é muito difícil. Para fazê-lo, é necessário esquecer-se de si mesmo. Enquanto eu quiser defender meu ego, minha vaidade e minha imagem, o prêmio se justifica. Por isso, é admirável quando uma pessoa, tendo algo de errado acontecido, chama para si a responsabilidade, assumindo a culpa - embora a gente saiba que a culpa não é só dela, pois existe todo um grupo na execução da tarefa. Ao assumir a culpa, ela encerra a discussão, pois não existem motivos para continuar a conversa. Se existe a justificativa, existirá a réplica e também a tréplica, e todo o carma continua. Então, quando a gente vê alguém assumir o erro, mesmo não sendo seu, isso é uma grande coisa. Já assisti várias vezes Saikawa Roshi pedir desculpas e assumir algum erro como sendo seu. Uma vez, em minha casa, minha esposa reclamou que eu havia ido para um angô e ela teve muitos problemas por ter ficado sozinha. Então Saikawa Roshi baixou a cabeça e lhe disse: “Me desculpe”. Ele retira dos outros e assume para si a culpa pela falha. Essa é uma demonstração muito importante desse tipo de visão a respeito das coisas. Monges e noviços têm dificuldades nesse sentido, pois, sempre que são questionados, tendem a dar explicações ou justificar-se.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Tempo no zazen


Pergunta – Acredito que em relação à questão da dependência do professor ou da Sangha, é importante que a pessoa tenha uma força interna para praticar, algo que lhe seja inato, uma força de vontade. Seria isso?

Monge Genshô – Não é inato, é construído. É claro que o sesshin, a Sangha e todo o restante, serão reforços que nos levam à prática. Mas ter uma determinação própria que não dependa do professor, é muito importante.

Pergunta – Na última semana conversamos sobre tempo de zazen para o dia-a-dia, para reforçar a prática. O que o senhor acha disso?

Monge Genshô – Acredito que o tempo do zazen seja apenas uma convenção. O tempo de quarenta minutos ficou estabelecido, na realidade, em razão do tempo médio de duração para a queima do bastão de incenso. No tempo de Dogen, quando os monges estavam cansados de ficar sentados, levantavam e faziam Kinhin e depois voltavam a sentar-se. Em algumas ocasiões, como no final do retiro de Rohatsu, ainda é assim. Ficamos sentados enquanto conseguirmos: algumas pessoas ficarão sentadas quinze minutos, outras uma hora. A prática não depende de tempo, mas sim de qualidade. Uma boa concentração de cinco minutos pode ser muito importante. Depende de sua mente e de sua habilidade de entrar em samadhi. Não existe um tempo padrão, embora, através dos tempos, se tenha estabelecido que o período de quarenta minutos seria razoável para a maioria das pessoas. Uma lenda do budismo diz que Bodhidharma sentou por tanto tempo que suas pernas secaram e para não adormecer durante o zazen, cortou suas pálpebras. Onde elas caíram, nasceu uma arvore de chá, então os monges passaram a tomar chá para não dormir.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A prática da vida diária


Nos reunimos como Sangha para praticar. É para se sentar com todos que se vem à Sangha, esta é a razão de sua existência. Mas se o fazemos por causa de uma liderança, a prática não é forte, porque a prática no zen não depende da liderança. A tradição é sentar sozinho durante longo período e visitar o mestre de vez em quando para tirar dúvidas, para mostrar aquilo que pensa que realizou, para expor e receber uma confirmação. Se nossa prática depende dos outros, ela é fraca. Deveríamos ser capazes de sentar sozinhos em nossas casas e nos reunirmos com a Sangha para apoiar os outros praticantes, não vindo, somente, porque naquele dia o professor estará presente. Isso, para o professor, é como se ele visse sua própria fraqueza, porque sua força é fazer praticantes fortes e não pessoas dependentes. Não é isso que o professor quer.

Durante toda a história do budismo, o esforço de todos os mestres foi de criar praticantes melhores que eles e que pudessem sucedê-los. Tantos mestres viram suas linhas, suas escolas, desaparecerem, porque não houve sucessores. Por ter isso ocorrido tantas e tantas vezes, a maior alegria de um mestre é ver grandes e fortes alunos que não dependem dele. Numerosos mestres tiveram apenas um discípulo sucessor, raríssimos tiveram centenas. Somente mestres como Buda tiveram muitos sucessores. Seria interessante nós examinarmos o que é a prática, como ela se estabelece. A prática, na verdade, só tem sentido se é usada na vida diária. Infelizmente, em nossa vida diária, temos que vestir máscaras e atuar em papéis que não são o papel do praticante. Alguns deles são verdadeiros impeditivos da realização espiritual. Então, a prática da vida diária é um enorme desafio, pois temos, frequentemente, que agir de outra forma. Na Sangha você pode - e deve - aceitar todas as falhas e erros dizendo: “não tem importância, vamos tentar mais uma vez”. Se os alunos estão fazendo bem o ritual, o professor pode mudar algo, porque o melhor é que as coisas nunca funcionem muito bem para que possamos nos aperfeiçoar. Se alguém é a pessoa bem treinada para determinada função, é conveniente tirá-la daquele papel em que ela se sai bem, para que ela passe a fazer algo em que ela não se saia tão bem. Se alguém ficar fazendo uma tarefa para a qual está bem preparado, será ruim para ele, para o seu ego, não lhe fará bem. Na verdade, a Sangha não deve funcionar muito bem, deve servir de caminho de aperfeiçoamento.