sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Treinados para ter um eu


2) Continuando nessa linha do sofrimento, o sofrimento físico está de certa forma dentro do esperado e estou conseguindo suportar, mas o que está me afligindo mais é a mente. O que posso fazer para apaziguar esse turbilhão?

Monge Genshô – Volte sempre para cá. Ouça o barulho do mar, os pássaros e cada vez que sua mente viajar volte para cá. Não há nada lá fora e se você repetir isso mil vezes a cada instante que ela viajar para passado e futuro, ela acabará se acalmando. Você pode passar o sesshin inteiro pensando no que faria com o dinheiro da loteria, mas estará jogando fora uma ótima oportunidade de obter clareza. Isso é só uma fantasia sobre o futuro, você pode acalentar fantasias sensuais durante cada zazen o sesshin inteiro, isso se chama naraku* zazen. Naraku é inferno, zazen dos infernos, inferno não no sentido Bíblico de céu e inferno, mas significando desordem, balbúrdia, agitação. Você mergulhado em imaginar prazeres vai perder seu zazen. Isso é um enorme desperdício de tempo, dinheiro e sofrimento, pois você investiu tudo isso para vir ao sesshin e uma vez sentado permite que sua mente viaje para futuro e passado. Volte sempre para cá.

3) Gostaria de entender melhor sobre o ego, como ele nasce? Sinto que às vezes estou conseguindo ir fundo no zazen e de repente algo me puxa de volta, acredito que esse algo seja o ego, como funciona isso?

Monge Genshô – Somos treinados para ter um ego e necessitamos dele para operar no mundo.  É como uma fantasia que vestimos para podermos transitar pelo mundo, ele é necessário. Veja por exemplo essa fantasia que estou usando, um manto, uma ordenação de Monge, um título de Sensei, o que é isso tudo senão uma construção? Não é uma realidade dentro de si mesma, está apenas operando dentro de uma cultura, a cultura do Zen, inseridos nessa cultura podemos operar como professor, Monges, noviços ou leigos. Isso é uma soma de agregados que são construídos desde a primeira infância quando nossos pais nos ensinam a linguagem e junto vem o “eu”. É preciso dizer “eu tenho fome”, “eu tenho sede”, então desde a infância existe uma identificação com algo abstrato chamado “eu” e que é ensinada pelos pais. Mesmo os animais têm essa identificação, pois sentem medo, paixão, ciúmes.

A linguagem é uma maravilhosa ferramenta e ao mesmo tempo em que aprendemos que temos um “eu” e aprendemos o oposto das coisas, certo e errado, também a linguagem permite que ensinemos o Dharma, ou seja, desconstruir tudo e permitir que você entenda que tudo não passa de uma construção de sua mente. A resposta à sua pergunta é que o ego é construído paulatinamente através de ferramentas poderosas e é essencial para operarmos no mundo. Por isso ele é um obstáculo tão gigantesco, pois a cada momento que desejamos operar no mundo sem isso e com uma noção maior de unidade de todos os seres, temos dificuldades, pois estamos voltados para nós mesmos, para nossos umbigos. Temos que olhar para fora e perceber o sofrimento das outras pessoas. Estamos tão auto-focados que não percebemos o que sentem as outras pessoas.

O ego é também uma maneira de não enxergarmos mais o mundo e não compreendê-lo, pois olhamos só para nós mesmos. Como funciona a mente de um psicopata ou estuprador? É uma mente que não enxerga o outro e seus sentimentos. Ele não vê na sua vítima um pai de família, uma criança ou uma pessoa incapaz de se defender e tão pouco percebe o sofrimento que está causando. Isso é percebido pelos homens, não é verdade? Todos percebem a doença dessa pessoa, mas a sociedade ainda está cega para o sofrimento de outros seres ignorando-os completamente, uma atitude claramente especista.

Vi outro dia uma notícia de pessoas escandalizadas, pois moradores de rua haviam matado cães e gatos para comer. Mas qual a diferença de matar um cão ou gato para comer e matar um boi, porco, galinhas ou peixes? Não existe diferença. O que acontece é que queremos privilegiar uma espécie que pensamos ser amiga do homem. É perfeitamente legítimo que uma pessoa morrendo de fome na rua mate um cão para comer. Ele não é diferente de vocês que vão ao açougue comprar um pedaço de boi ou porco para comer. São cegueiras humanas, pois estamos centrados em nós mesmos e não vemos o sofrimento dos outros seres.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Dor na meditação


1) O que eu vivi hoje foi uma dificuldade muito grande em razão da dor. Gostaria de uma instrução de como lidar com a dor durante o zazen.

Monge Genshô – Você sempre pode trocar de posição. Se ainda assim continuar doendo, pegue uma cadeira. Você tem a opção de escapar da dor, mas por outro lado o sofrimento é bom. O caminho mais curto para a realização espiritual é o sofrimento físico e emocional. As pessoas que não sofrem têm grandes dificuldades. Havia uma pessoa que tinha todas as facilidades, havia nascido numa família sem dificuldades financeiras, era inteligente, boa saúde, bonito e o seu mestre lhe disse, “Eu oro para que a vida lhe traga muita dificuldade”. O que ele temia é que com tantas facilidades na vida o jovem ficasse cada vez mais orgulhoso e vaidoso. O sofrimento nos tira de nosso “eu”, pois nos desestrutura e desestabiliza. Essa é a situação para a realização espiritual. Em geral a maior dificuldade dos alunos e Monges Budistas é o ego e a vaidade. É possível perceber claramente o desejo de reconhecimento e prestígio.

O objetivo dos treinos em um mosteiro é quebrar esse ego, as pessoas dormem no chão, comem a mesma comida, vestem o mesmo tipo de roupa, não são permitidos uso de jóias ou perfumes, a comunicação é restrita para evitar que alguém se destaque, algo bem próximo do que temos no nosso sesshin. O sofrimento tem a virtude de demolir o ego e é uma grande oportunidade de descobrir nossa verdadeira natureza, algo que está além das lantejoulas do ego. Aproveite o sofrimento, mas se ele for tanto que você não consiga pensar em mais nada, ele está perdendo seu objetivo, mude de posição ou pegue uma cadeira. A vergonha que você sente por se mexer e incomodar o colega ao seu lado é bem vinda, desistir de ser bom, de sentar perfeitamente, de ser bom praticante é muito bom, reconheçam, vocês não são bons praticantes. Quem pensa que é bom e pode ensinar, está no caminho errado. Saikawa Roshi disse que o melhor sentimento de um praticante é: “Eu sou um tolo”.

Uma descoberta arqueológica revolucionária a respeito do Buddha?


 Pela excelência da análise reproduzimos artigo do Prof. Ricardo Sasaki publicado no blog Folhas do Caminho. ( link ao final)


 Uma descoberta arqueológica revolucionária a respeito do Buddha?

Lumbini, local de nascimento do Buda
Uma descoberta arqueológica revolucionária a respeito do Buddha?

A notícia no site da Globo é: “Estudo sugere que Buda viveu dois séculos antes do que se pensava - Cientistas descobriram estrutura de madeira no lugar onde ele teria nascido. Evidências indicam que sábio pode ter vivido no século VI a.C.” Desde ontem essa notícia tem circulado pela internet no mundo todo como fogo em capim seco. Já perdi a conta de quantas pessoas me enviaram essa notícia e de quantos compartilhamentos já fui notificado nas redes sociais. Escreverei aqui, sucintamente, minhas impressões iniciais sobre tal notícia que considero altamente superestimada.

Tudo isso começou a partir da publicação no site da National Geographic (que apoiou o projeto) de uma escavação liderada pelo arqueólogo Robin Coningham da Durham University da Grã-Bretanha e cujo estudo inicial foi publicado na revista Antiquity na segunda-feira, dia 25 de novembro. Segundo Coningham: “O que descobrimos é o mais antigo altar buddhista no mundo”. A matéria da National Geographic tem como título: “Oldest Buddhist Shrine Uncovered In Nepal May Push Back the Buddha's Birth Date

A partir desse artigo, jornais e revistas de todo o mundo começaram a replicar a matéria, e mesmo sites brasileiros de notícias, como Globo, Estado de São Paulo e UOL, deram destaque com chamadas sensacionais, enquanto que os internautas receberam a notícia ainda mais entusiasmadamente.

Mas será que tudo isso é justificado? Vamos aos fatos: Lumbini, localizada no Terai nepalês é considerada como o local de nascimento do Buddha (A matéria da UOL tem como título: “Arqueólogos descobrem local onde Buda teria nascido no século 6 a.C.”, como se nunca se tivesse sabido disso). Lá se encontra um templo erigido em homenagem à sua mãe, o Templo Maya Devi, que hoje é um centro de peregrinação para buddhistas de todo o mundo. Na época em que o visitei, Lumbini não era ainda um local muito visitado, havia apenas um ou dois templos buddhistas no local, a hospedagem era difícil, e o Templo Maya Devi estava muito aquém de sua importância. De lá para cá muito mudou.

No interior do templo, a equipe de arqueólogos da Universidade de Durham, que já trabalha no local há três anos, descobriu uma estrutura ainda mais antiga, e dentro dela, cercando um local semelhante a um altar em homenagem a uma árvore, uma estrutura protetora de madeira onde foram achados fragmentos de carvão vegetal e solo batido. Ao serem examinados por meio de técnicas de radiocarbono e luminescência estimulada opticamente, os acadêmicos dataram as amostras para aproximadamente 550 a.C. Esses são os fatos, o resto é especulação.

Vamos primeiramente notar a afirmação presente no título do Globo: “Estudo sugere que Buda viveu dois séculos antes do que se pensava”. Alguns internautas até aumentaram essa notícia e já vi pessoas divulgarem que a descoberta provou que o Buddha havia nascido 300 anos antes do que se imaginava! Pois bem, segundo as crônicas cingalesas da tradição Theravāda, a morte do Buddha seria situada a 218 anos antes do coroamento do rei Aśoka. O ano estimado antigamente para esse coroamento era 325 a.C. A partir dessa data se chega à morte do Buddha em 543 a.C., com seu nascimento, então, ocorrendo por volta de 624 a.C. Essas são as datas oficialmente reconhecidas dentro da tradição Theravāda do Buddhismo. Não se pode absolutamente saber quando o altar para a árvore, em Lumbini, foi construído. Se ele foi construído por volta do nascimento do Buddha, então, a data de nascimento do Buddha seria adiantada (para 550 a.C.) uns 70 anos, e não retrocedida, como noticiado. Se o altar foi construído durante o período em que o Buddha viveu, comemorando seu nascimento, então, a datação acadêmica se mantém estritamente dentro do que a tradição Theravāda já dizia, sem nenhuma novidade.

As pesquisas modernas, no entanto, principalmente a partir de comparações com os registros gregos da época, modificaram a data em que se acreditava como sendo a do coroamento de Aśoka. No 13o Edito em Pedra do imperador Aśoka é dito que ele enviou vários missionários para as quatro regiões da terra. Com base em registros de cinco reinos gregos hoje se admite com relativa segurança que Aśoka foi coroado em 268 a.C. Essa cronologia, então, foi revisada para 486 a.C como a sendo a da morte do Buddha (alguns dão a data de 483 a.C.), e portanto o nascimento vai para 566 a.C., ou seja, exatamente aquilo que a datação dos pesquisadores indicou, caso o templo tivesse sido construído na época do nascimento do Buddha. Mas como disse acima, não há como relacionar cronologicamente a construção do altar com os dados da vida do Buddha. O altar, cuja datação aponta para 550 a.C. poderia ter sido construído 500 anos ou mil anos após a morte do Buddha, o que hipoteticamente poderia levar a retrocedermos seu nascimento para qualquer tempo antes de 550 a.C. Mas caso ele tenha sido construído ainda durante a vida do Buddha ou logo após sua morte, tal descoberta em nada muda de maneira significativa o que a tradição Theravāda já diz há séculos.

Nas últimas décadas, no meio acadêmico buddhista, uma nova data para o período de vida do Buddha, tem sido sugerida, baseada em dados cruzados de fontes históricas, textuais e arqueológicas, colocando a morte do Buddha por volta de 400 a.C., e seu nascimento, portanto, para 480 a.C. Ainda nesse caso, se o altar encontrado e datado tivesse sido construído na época de seu nascimento, tal datação (550 a.C.) teria uma diferença de apenas 70 anos, um diferença numérica praticamente irrelevante em termos de arqueologia antiga.

AP/National Geographic
Todas essas considerações acima, porém, são pertinentes apenas no caso do altar encontrado ser realmente um altar buddhista, o que absolutamente não foi comprovado. O fato de se encontrar uma estrutura religiosa submersa dentro de outra mais recente, absolutamente não indica que as duas façam parte do mesmo movimento religioso. A história mundial é repleta de igrejas cristãs sendo construídas sobre antigos templos romanos, mesquitas sendo construídas sobre ruínas de igrejas cristãs e templos hindus, e assim por diante, pois frequentemente as religiões ‘reaproveitam’ lugares considerados sagrados anteriormente. O fato de existir originariamente um altar em homenagem a uma árvore, e sobre ele ter sido construído muito mais tarde um templo buddhista é algo completamente comum e normal. O culto a árvores sempre foi extremamente comum e disseminado por toda a Índia, continuando forte até hoje. Certas árvores são vistas como especialmente sagradas, alguns acreditando serem habitadas por espíritos e deidades poderosas. Seu culto aparece já nos Vedas de milhares de anos antes, sendo as árvores consideradas como o meio de comunicação entre as deidades superioras e os homens. É dito no Atharva Veda: “O Grande Espírito, imerso na concentração sobre a superfície da água no meio do mundo, sobre ele várias deidades estão fixadas como ramos ao redor do tronco de uma árvore” (AV 10.7.38). O culto às árvores sagradas é também parte da religiosidade não-védica, uma religiosidade que o Buddhismo e o Jainismo abarcam posteriormente assimilando vários de seus elementos e locais sagrados. O arqueólogo Coningham aponta que o fato de não terem encontrado vestígios de sacrifícios animais, como era comum no Brahmanismo, seria um indicativo do altar ser buddhista. Entretanto, o Brahmanismo não era tão forte na região dos Śakyas, cujo predomínio era da casta dos nobres, portanto antagônica ao domínio brahmāṇico. Além disso, jainistas e outros ascetas já perambulavam nessa região há muito, levando a não podermos absolutamente concluir que a mera existência de um altar em homenagem a uma árvore seja ligado originariamente ao Buddhismo. A única coisa que a descoberta mostra é que houve um altar dedicado a uma árvore, e que muito mais tarde um templo buddhista foi construído sobre ele.

Tudo isso mostra que a descoberta e datação realizadas, ainda que importantes em si mesmas, absolutamente não implicam na conclusão de que a estrutura analisada seja buddhista (como no alardeado “encontrado o mais antigo templo budista do mundo”), e nem justifica as afirmações de que a descoberta altera significativamente a data em que se supõe que o Buddha teria vivido, ou nem mesmo prova que ele viveu em tal data sugerida. Tudo muito longe de ser “uma descoberta que pode mudar a história do Buddhismo”, tal como anunciado no National Geographic Channel, e aplaudida por tantos.
Reproduzido de: http://folhasnocaminho.blogspot.com.br/2013/11/uma-descoberta-arqueologica.html

A vida se mostra a cada passo


Nós pensamos em alcançar ou fazer algo e isso cria ansiedade e expectativa. A vida não é para ser vivida desta forma, impondo à vida nossos projetos pessoais. Talvez o projeto da vida seja diferente. Vamos construindo nossa vida com nosso caminhar. Quando existe um projeto, este cria um conflito, pois irei forçar a vida a se coadunar ao meu projeto. Temos que aceitar a vida tal como se apresenta, pois talvez meu projeto não seja possível dentro da vida.

O mais famoso físico da era moderna, Stephen Hawking, tem uma doença degenerativa que lhe paralisou o corpo inteiro e se comunica através de um dispositivo de geração de fala que lhe permite ditar seus livros, dar palestras e entrevistas. Quantas pessoas no mundo têm um problema infinitamente menor que esse, mas que é suficiente para impedir que essa pessoa faça algo em sua vida? Temos no Brasil um famoso pianista, João Carlos Martins, que após alguns acidentes e uma agressão física na Bulgária, onde lhe bateram com uma barra de ferro na cabeça acarretando um problema neurológico, que fez com que perdesse os movimentos das mãos e fosse impedido de continuar a tocar piano. Ele desistiu da musica? Não, tornou-se um maestro e rege uma orquestra. Ele aceitou a vida tal como ela se apresentou.

Nós, com nossos corpos e mentes perfeitos, nos incomodamos com situações, palavras e atitudes e não enxergamos que temos que nos adaptar ao mundo e não ele a nós. Durante milênios a Escola Zen vem desenvolvendo esse tipo de treinamento que estamos realizando. Antes de criticarmos o modelo da sangha, modelo de aceitação, obediência e silêncio, modelo de destruição do ego, temos que nos lembrar que são mais de mil anos de trabalho de muitos mestres para desenvolver esse tipo especifico de treinamento. Por quê os mestres ensinam um dia de um jeito e no outro dia mudam? Para que ninguém se agarre às instruções, métodos, formas e pensem que elas são a essência do Zen. São apenas instrumentos de treinamento. Mudar as formas é um ensinamento precioso que diz para que não nos agarremos, não existe certo e errado ou tem que ser feito dessa ou daquela maneira.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O homem e sua circunstância


No primeiro dia de retiro, quando sentamos, muitas coisas vêm à nossa mente. Mas do primeiro para o último zazen do dia já possível observar uma mudança na mente. No início a agitação é bem maior e vêm mais coisas à mente, mas como elas se repetem no decorrer do dia, é possível perceber que há uma mudança e o que se apresenta nos últimos zazens é um pouco diverso. Mesmo quando sentamos e pensamos que fizemos um mau zazen, esses efeitos podem ser percebidos.  Não existem bons ou maus zazens, você fez o zazen possível com a mente que você tinha naquele momento. O grande desafio do sesshin é mudar a mente, mudar seu conteúdo. As imagens que surgem são a fotografia do nosso estado mental. Você deve olhar e dizer sem engano: “esse sou eu”. Sentado de frente à parede não há ninguém para enganar. Irão surgir os pensamentos que são predominantes neste momento e isso é muito importante, pois são os conteúdos importantes de hoje, aquilo que você vive agora, pode ser que semana passada você fosse outra pessoa e pode ser que amanhã seja outra diferente, com outra mente. Vai depender do que você alimentou sua mente, as notícias que recebeu e os estímulos.

Temos a tendência de pensar que o “eu” é estável e sólido, mas não é. Ele é constantemente alterado pelas circunstâncias e acontecimentos. Ortega y Gasset, um famoso filósofo moderno disse que “O homem é o homem e sua circunstância”, a circunstância de agora me altera. Como você pode lidar com a vida tal como ela se apresenta? Você não pode alterá-la, só a sua perspectiva com relação à vida pode ser alterada. Tem uma pessoa à quem tenho que ligar amanhã, apesar de estar em retiro eu assumi um compromisso com ela, pois seu filho está com câncer e amanhã começa a quimioterapia. Ela me disse: “amanhã começa a quimio, vai ser uma coisa muito pesada”. Então eu lhe disse: “não, amanhã começa a cura”. A situação é a mesma, mas você pode mudar a maneira como a vê. É sim uma coisa difícil que começa, mas é também a cura.

Quando eu era criança, leucemia era uma sentença de morte, mas hoje existem 85% de possibilidade de cura. A vida toda é assim, você pode olhar para ela e vê-la de forma diferente, alterar a maneira como a vê. Veja a sangha, por exemplo, você pode pensar que ela é obrigada a aceitar a sua maneira de ver as coisas e pode ser que a comunidade não aceite sua opinião. O que você faz, aceita ou luta? Você é a sangha. Você deve aceitar. À medida que vamos vivendo vamos elaborando a vida e a transformando, mudando os óculos que colocamos para ver o que sucede. Se uma pessoa não gosta da minha maneira de agir eu posso ter dois óculos, com um eu a verei como errada e eu como certo, e com outro eu me veria como errado. Quem sabe eu não saiba como atingir os objetivos, mais ainda, quem sabe eu nem deveria ter objetivos?

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nem eu nem outro


Pergunta – Como ter uma compreensão clara de coisas boas, por exemplo, de compaixão e generosidade? O Senhor estava falando que não existe um “eu” para sentir raiva, mas então quem é o “eu”’ que realiza atos de compaixão e generosidade?

Monge Genshô – O Bodhisattva tem compaixão, mas para ser totalmente iluminado não pode enxergar os outros seres. Não pode haver eu aqui e você aí, de quem eu me compadeço. A visão de um “eu” separado está dentro da segunda Roda do Dharma.

A primeira Roda é a da Virtude, onde existem regras, não faça o mal, pratique o bem etc.

A segunda é a Roda da “Mente de Bodhichita” onde o ser tem compaixão, mas ainda vê o outro.

Na terceira Roda existe a não dualidade, ou seja, entre mim e você não existe diferença, a compaixão já não se aplica.

Sob o ponto de vista teórico sua pergunta faz muito sentido e deveria ser respondida no âmbito da não dualidade, mas não conheço algum praticante Budista que pratique perfeitamente a compaixão, conheço muitos que tentam praticar a virtude, a palavra correta, a mente correta e os pensamentos corretos. Pessoas que mesmo tentando se comportar melhor, ainda têm uma profunda noção de si mesmos e têm pena dos outros, o que é diferente de compaixão. Compaixão é não dualidade, é você realmente se colocar no lugar do outro, sentir a dor do outro, ser o outro, não existem outros seres, você e o outro são a mesma coisa a ponto de você nem sentir compaixão, pois não existem outros por quem se compadecer. É paradoxal para uma mente não dual matar outros seres para comer seus pedaços, por exemplo. Conheço apenas praticantes no estágio da virtude com raríssimas exceções. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Use o sistema mas não se confunda com ele


Pergunta – Então é muita perda de tempo ter raiva, pois tudo faz parte do sistema, faz parte de uma ilusão.

Monge Genshô – Exato e se você puder abandonar tudo está livre. Mas mesmo assim nunca se estará totalmente livre, veja, a pessoa se torna Monge e os seus alunos esperam algo de você. Então é outro tipo de sistema, mas ainda é um sistema, pois você tem obrigações, tem que cumprir com cronogramas de retiros, sangha e etc.

Pergunta – Mas o sistema é necessário para a sobrevivência de todas as pessoas, pois se todos resolvem burlar o sistema, a sociedade para e do que as pessoas viveriam?

Monge Genshô – Exato, mas onde está a grande questão? Eu tenho um nome, mas tenho que entender que ele apenas serve para que eu transite nesse sistema, é só uma fantasia, não uma realidade. Você possui um numero de CPF que lhe é útil para que você consiga uma série de coisas, mas deve entender que esse número não é você, é apenas uma fantasia criada dentro de uma instituição. Se você tiver a consciência clara de que é uma fantasia, poderá perdê-lo sem desejar se matar. A pessoa que se mata porque perdeu o crédito acreditou que ela fosse a fantasia, o nome ou o número. A pessoa pode usar o sistema e seus rótulos como algo útil, desde que não se confunda com eles. É como usar uma roupa, você não pode pensar que você é a roupa. Essa compreensão é muito importante.

Pergunta – Eu fico pensando nessa pessoa e se ela fez algo para que isso acontecesse realmente ou se foram as circunstâncias que o colocaram nessa situação. O problema de ser o caloteiro é quando a própria pessoa cria as condições de ser chamado de tal.

Monge Genshô – Essa é outra situação. Isso é usar de artifícios dentro do sistema para levar vantagens. Mas de qualquer forma esta pessoa também está presa ao sistema. O que eu quero é fazer com que vocês olhem para o sistema e seus rótulos como instrumentos para transitar no mundo, mas não se confundam com eles. Você não é o “eu”, pois nada tem um “eu” inerente, todos os “eus” são construídos e tudo que estamos falando sobre sistema faz parte das atribuições criadas pelo sistema. É funcional? Sim, mas é uma ilusão, não é a realidade e por isso não tem sentido, por qualquer coisa que aconteça dentro desse sistema, você se matar. A grande lição disso tudo é a existência de uma liberdade fundamental da qual você pode usufruir. Você pode usufruir de todo o sistema desde que não perca sua lucidez. O sistema é útil, mas não é a essência da vida. O dinheiro é útil? Sim, mas não somos o dinheiro.

O sistema pode ser usado e pode ser abandonado


Pergunta – Algumas pessoas, e isso já aconteceu comigo, quando não conseguem realizar suas necessidades básicas ficam totalmente alteradas e nessas condições é muito difícil se manter lúcido...

Monge Genshô – Corpo e mente estão ligados. Isso acontece comigo também, por exemplo, no final do dia, eu, cansado, com sono e fome, depois de ter resolvido milhares de problemas, surge mais uma pessoa com problema. O melhor seria você poder deixar para outro dia, pois talvez a importância não seja assim tão grande no dia seguinte. Com o passar do tempo as coisas parecem perder a importância. Quando você não está em boas condições físicas isso altera sua mente.

Pergunta – Tudo está também relacionado com a disciplina, não é? Se a pessoa se observar e descobrir que tem determinadas reações que não são corretas, ela deve tentar uma maneira de eliminar esse tipo de sentimento?

Monge Genshô – Sim, ela deve reconhecer que não está bem. Mas ainda assim talvez o pensamento mais correto seja perceber a finitude de todas as coisas, todos iremos morrer e os problemas não têm a menor importância. Alguém pode lhe dizer de forma desesperada que sua empresa irá quebrar ou que você perderá todo seu crédito. Qual a importância disso se você irá morrer? Poderão pensar que você seja louco, mas isso é colocar as coisas sob uma perspectiva mais ampla da vida.

Um amigo me escreveu ontem pedindo conselhos, pois sua empresa está em dificuldades, o condomínio está atrasado etc. Pedi à ele que anotasse em uma folha as contas que ele obrigatoriamente deve pagar, por exemplo, comida, luz e empregados da empresa, senão a empresa não funciona e aí sim ela quebra de vez. Em outro papel as contas que se não forem pagas imediatamente nada acontece.  Então ele respondeu perguntando sobre o crédito dele. Como ele já havia perdido o crédito, também não havia porque se preocupar. Mas e o condomínio? O condomínio irá lhe processar e vai entrar na justiça contra você, mas isso leva meses e quando acontecer, você propõe um acordo. Você já está com quase setenta anos, para que se preocupar tanto, imagine se você morre amanhã?

Pergunta – O Senhor está ensinando a ser caloteiro?

Monge Genshô – Isso é uma questão de sobrevivência. Os assalariados pensam muito no crédito, isso é muito importante para eles. Quem lida com empresas e grandes volumes de dinheiro frequentemente têm que tomar esse tipo de decisão, faltou dinheiro paga-se o quê? Aquilo que é importante, ou seja, o que for importante para que a linha de produção se mantenha funcionando. O banco? Fica para depois. Os impostos? Ficam para depois.  Isso se chama Administração Financeira de Recursos Escassos. Vale a pena se desesperar por causa disso? Não. Existem muitos exemplos de empresários que se matam quando suas empresas não vão bem. Nada é tão importante, no fundo são apenas palavras, por exemplo, quando alguém lhe acusa de estar caloteando um banco. O que é um banco? Uma entidade que empresta dinheiro que sequer tem, através do truque da alavancagem financeira, no qual emprestam até 25 vezes o mesmo dinheiro como sucedeu na quebra de 2008. Esse é apenas um dos exemplos de quantas coisas no mundo são puramente ilusórias e apenas por acreditarmos nelas é que somos, por elas, manipulados.

Esse amigo que me escreveu estava pensando que seu nome era seu crédito, mas quem o convenceu de que isso era importante? Quem atribuiu nome à ele? Quem criou o crédito? Quem criou o instrumento de pressão sobre as pessoas? Quando as pessoas admitem essa ilusão, elas entram no jogo e podem ser manipuladas. Se você conseguir não dar importância ao seu nome e seu crédito, estará livre da pressão. Perdeu o crédito? O que você vai fazer, se matar? Claro que não, continue trabalhando, pague todas sua dívidas e peça o crédito novamente, se você quiser, é claro, pois se você estiver muito rico não precisa de crédito. Só precisa de crédito quem não tem dinheiro.

As coisas não são exatamente o que parecem e é absurdo que alguém morra por perder seu crédito ou sua empresa. Isso não é motivo suficiente para você se matar, lembrem-se, Buda deixou seu reino, seu castelo, suas roupas de príncipe, cortou seus cabelos e foi para a floresta. Ficou totalmente pobre, nada mais que um mendigo e como fez isso porque queria não sentiu-se um derrotado. É que neste momento ele tornou-se totalmente livre.

Quando acreditamos nas ilusões que o mundo nos vende, que são o nome, a forma, crédito etc., somos prisioneiros e podemos ser manipulados pelas invenções que as instituições podem criar. Mesmo as coisas que nos parecem mais preciosas como o nome de família, por exemplo, alguém o convenceu que tem um nome de família e que deveria honrá-lo. A palavra que você usou, caloteiro, é uma palavra deste sistema que coloca um etiqueta na pessoa para aprisioná-la e forçá-la a ficar dentro, útil ele, como o nome e a forma, mas uma construção mental em última análise que você pode usar se quiser e pode abandonar se decidir.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Quando você a manifesta a raiva cresce


Pergunta – Quando surge um sentimento de raiva, o que é o melhor a fazer? Essa é uma grande dificuldade, controlar a raiva.

Monge Genshô – Você não deve tentar vencer pelo controle, isso é uma má técnica, pois o controle sempre falha. Você tem que investigar de onde vem a raiva e descobrindo a raiz poderá matar essa planta. É muito bom não manifestar a raiva, mas você deve ser capaz de perceber quando ela surge e detectar sua origem. Geralmente vem do orgulho, ou seja, essa pessoa está incomodando meu orgulho, então a raiva não nasce da pessoa que me ofende e sim de dentro de mim. Sou eu quem faço o sentimento existir. Tenho que descobrir dentro de mim a raiz que sustenta o sentimento que estou projetando sobre outra pessoa. Não são os outros que nos perturbam e sim nós que nos perturbamos com os outros.

Pergunta – Sim, entendo, só que parece que se eu não explodir a situação fica pior, pois vou continuar sentindo. Mesmo sabendo que é um sentimento inútil, ele continua presente.

Monge Genshô – Essa é outra ilusão. Se você o manifesta ele não irá diminuir, mas sim aumentar. A coisa funciona mais ou menos assim: você me diz algo que me causa raiva e eu respondo levantando minha voz. Você então retruca levantando ainda mais a voz. A cada resposta sua minha raiva se alimenta. A cada resposta e contra resposta o sentimento dos dois aumenta podendo chegar até mesmo à agressão física, ou seja, o que era ruim só piorou e as consequências cármicas são ainda maiores. Do ponto de vista Budista você não deve manifestar. Existem alguns momentos que merecem indignação e reação, mas você pode fazer isso sem raiva, sem perder a lucidez e sem levantar a voz. Tendo compaixão pela pessoa que faz algo errado. O que precisa é treinar como fazer.

Pergunta – Sim, eu tenho a compreensão, mas minha questão é como chegar na raiz e não deixar que ela obscureça.

Monge Genshô – Se você souber de onde vem é um grande começo. De onde vem? Por exemplo, se alguém me ofende, quem se ofende? Quem é esse que se ofende? O “eu”. E quem é o “eu”? Uma construção. Se o “eu” não está presente, quem pode ser ofendido? Algo que ajuda muito é pensar que tudo será esquecido e que tanto você quanto quem o ofende irá morrer. Não importa. Você pode olhar para a pessoa que o ofende e pensar: “quanta besteira ela irá morrer e eu também”.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Enganadoramente simples


O Dharma é enganadoramente simples, é colocar os chinelos, é sentar-se. Na realidade as instruções para o zazen também são enganadoramente simples, entrar na sala, procurar uma almofada, sentar-se, não mover-se e acalmar o corpo para acalmar a mente. Ficar imóvel durante o zazen é importantíssimo, pois uma mente agitada é um corpo agitado. Usamos o corpo como uma âncora para acalmar a mente. Fazer zazen é, portanto, simplesmente sentar e existir, ser uno com todas as coisas, ouvir os sons sem julga-los, não fazer cogitações ou viagens para passado ou futuro. Todas essas parecem ser instruções bem simples, mas somente aqueles que sentam para experimentar é que descobrem o quão difícil é essa simplicidade.

Da mesma forma quando estamos vivendo, nossos gestos e ações devem ser controlados. Se houver atenção ao que fazemos não derrubaremos coisas. Se em tudo que fizermos houver a presença de todo nosso ser, corpo e mente, nossos gestos tornar-se-ão calmos e precisos. O mesmo deverá ocorrer com nossas palavras. Ao tomarmos cuidado com as palavras elas não ofenderão ou causarão desarmonia e desavenças. Tudo isso é uma questão de prestar atenção e é razoavelmente simples. O mais difícil é não permitir que nossa mente se agite com pensamentos e sentimentos e não permitir que os acontecimentos externos nos mobilizem, fazendo com que falemos ou ajamos de forma incorreta, não permitir que nossa mente seja tocada pelo vento.

Em muitos textos o vento é a analogia preferida para descrever as paixões, pois ele empurra as folhas de um lado para o outro e se deixarmos que os sentimentos ajam, ficaremos como as folhas, batendo de um lado para o outro arrastados pelos sentimentos e pelas paixões. Esse é um dos votos do Bodhisattva, “As paixões são inexauríveis, faço o voto de extinguí-las todas”.

Os ventos são as paixões e nossas vidas são abundantes em ventos e tempestades. Extinguindo as paixões poderemos repousar, mas isso não significa que com isso perderemos nossa capacidade de nos emocionarmos, sentirmos e partilharmos os sentimentos dos outros seres.

Fazendo com que nossas mentes parem, nos tornaremos boas antenas receptoras do que acontece à nossa volta entendendo e sentindo o que os outros sentem. A marca daqueles que conseguem silenciar suas próprias paixões é compreender as paixões dos outros, pois há dentro de todos os mesmos impulsos e nós os conhecemos e, por sermos humanos, nada do que é humano nos é estranho.
É importante sermos capazes de nos mantermos sensíveis ao mesmo tempo em que somos capazes de extinguir nossas paixões. Esse é o significado do segundo voto do Bodhisattva.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nosso poder extraordinário é não precisar de poderes extraordinários



Pergunta – O que o Budismo pensa sobre o desenvolvimento? Por exemplo, hoje em dia nos surpreendemos com o que as civilizações antigas faziam com tão poucos recursos tecnológicos. Nós regredimos ?

Monge Genshô – Nós sempre queremos acreditar em coisas fantásticas. Em alguns aspectos as civilizações antigas realmente desenvolveram coisas interessantes, como por exemplo, o calendário Maia que é mais bem calculado e exato do que o calendário astronômico desenvolvido na Europa.

No entanto, eles não conheciam a roda nem o aço. O que descobrimos nas escavações são artefatos extraordinários feitos com tecnologia muito pobre ou limitados, o que exigia enorme trabalho e esforço. Só encontramos materiais feitos de ferro de 1200 a.C. pra cá, porque o ferro necessita de grandes temperaturas para ser forjado, uma técnica muito difícil de ser empregada para se conseguir uma resistência maior de ferro. Ao ser misturado ao carbono ele começa adquirir a resistência do aço e se tornava caríssimo, no início do século XIX ele tinha o preço de uma joia, porque sabíamos fazer o aço através de um longo trabalho manual de dobra e purificação mas não industrialmente.

Foi a partir deste século, com Henry Bessemer, (1856) que foi criado um método de purificação do ferro onde era tirado todo o carbono e depois recolocado na medida certa, dando origem à um ferro fundido que pôde ser moldado, fazendo-se navios de aço, trilhos de trem e pontes. Nenhuma civilização anterior fez algo parecido com o aço industrial. Temos uma tendência a querer algo extraordinário e isso acontece também no meio religioso. Meu trabalho como professor do Zen é destruir isso, pois muitas pessoas vêm para o Zen esperando coisas espetaculares e extraordinárias. Embora os mitos criem facilmente o extraordinário, não precisamos fazer isso para que o Budismo dê os seus resultados, não precisamos dizer que os Monges têm poderes extraordinários e fazem milagres.

Nosso poder extraordinário é não precisar de poderes extraordinários. O mito de que um homem se transforma em Deus, ou desce à Terra como um Deus, não é um mito Cristão. É muito anterior ao Cristianismo. Quando surge o Cristianismo, um homem, Jesus, incorpora um mito e este se transforma num mito Cristão. Mas ele já existia na Índia com Krishna ou na Grécia com Hércules e os filhos dos deuses. São arquétipos humanos e existiam em toda a história da humanidade. Tentaram fazer o mesmo com Buda e existem de fato escolas Budistas que divinizam Buda e o que acontece é que aí  existem dois Budas, o Buda homem e o Buda transcendente. Para eles, o Buda homem é uma manifestação do Buda transcendente. É bonito mas para nossa linhagem não é assim. Por isso sempre digo que Buda morreu de diarreia, para que todos percebam que somos homens iguais Buda. Isso significa qualquer um de nós pode despertar como Buda.

Esse ensinamento é muito mais difícil de ser compreendido e muito mais maravilhoso do que quaisquer milagres. Em cem anos estarei morto e muito provavelmente muitos de meus alunos diretos também, mas os alunos destes, talvez digam que ouviram falar que o Sensei Genshô podia andar sobre as águas. Temos a tendência de querer tornar sobrenatural tudo que nos toca emocionalmente. Não existem passados maravilhosos e com o tempo degeneramos. Os homens nunca viveram tanto e nunca fomos tão poderosos, o que acontece é que a humanidade sempre foi insensata.

A história humana é a história da insensatez. O que acontece no nosso século é que a tecnologia que cresceu rapidamente nos últimos cem anos nos deu poderes desproporcionais em relação à nossa evolução mental. Antes os homens eram insensatos mas usavam machados; agora têm moto serra. Então as florestas são destruídas. Mas se você conseguir mudar sua mente e conseguir colocar um pouco de consciência nos governantes, usando apenas esse exemplo isolado, podemos mudar muita coisa. Vejam o Japão, tem mais florestas, proporcionalmente, que o Brasil. Tem 70% de seu território coberto por florestas, isso porque um imperador  ordenou que não se cortassem mais florestas. O que temos que fazer é mudar nossas mentes para conservar esse mundo precioso. Como diz o Budismo, tudo começa dentro das pessoas, por isso trabalhamos duramente para mudar nossas mentes, não olhem para fora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

OS TRÊS VENENOS DA MENTE

                                             Prática zen budista em casa de retiros jesuítica

Os três venenos da mente são o apego, a aversão e a raiva. São eles que transformam todos os nossos bons sentimentos em prisões. O apego transforma o amor em ciúmes, por exemplo. O apego gera sofrimento quando o objeto de nosso apego é perdido. O apego transforma a própria vida em uma prisão quando nos agarramos à ela sem compreender que nascimento e morte fazem parte de um fluxo, um mero evento ao longo de nossa vida.

O outro grande veneno da mente é a aversão, e ele se manifesta em tudo que não gostamos ou detestamos. É tudo o que olhamos como reprovável nos outros e nos perturba com um sentimento de afastamento e separação. Vemos o outro claramente. A aversão é um sentimento oposto ao apego, enquanto o apego quer agarrar a aversão quer afastar. Ela se manifesta em todos nossos sentimentos de repulsa, desgosto ou através das nossas críticas.

O terceiro grande veneno é a raiva. Esse veneno surge quando nos deixamos tomar por um sentimento turbulento, agressivo e que se manifesta das mais diferentes formas. Como se fosse uma espécie de loucura que nos tira a sanidade. Essa é a mensagem de hoje para vocês, esse tema tão presente nos discursos de Buda. O apego é um grande problema e, para sermos verdadeiramente livres, não podemos ser apegados.

Podemos amar, mas não podemos nos apegar. Para sermos livres e nos sentirmos um com todos os seres, não podemos selecionar qualquer ser e dizer que temos aversão por ele. Se cultivarmos esse sentimento estamos cultivando o contrário do apego e esse sentimento também irá nos separar de tudo e nos tirar o equilíbrio. Não teremos equidade com todos os seres se cultivarmos a aversão. Quando esse sentimento surgir, temos que considerar as boas qualidades das pessoas, animais ou objetos que são alvos dele.

O sentimento de raiva deve ser evitado como se fosse fogo, pois ele é perturbador e devemos mudar nossa mente, nosso modo de falar e pensar a fim de evitá-lo. Essas são as palavras de Buda.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Por que você está aqui



Pergunta – O senhor falou sobre a construção do carma, mas o meio em que vivemos, direta ou indiretamente também não é responsável pela construção deste carma?

Monge Genshô – Não. Você já está neste meio em razão de seu carma. Já fez parte de seu caminho. O meio nos ajuda ou atrapalha, porém, você tem uma grande capacidade de escolha. Por exemplo, hoje, em vez de estar aqui você poderia estar num boteco bebendo. Você é livre e escolhe seus companheiros. Nós escolhemos o nosso mundo. Não podemos dizer que vivemos e agimos de determinada maneira porque nascemos em determinado país.

Pergunta – Eu falo até em razão disso mesmo que o Senhor disse, a oportunidade que temos, nessa cidade, nesse bairro e com estas pessoas. Isso é muito raro. Eu moro em uma cidade distante de Florianópolis e as pessoas de lá não têm essa oportunidade.

Monge Genshô – Mas você pode montar um grupo de estudos em sua cidade e propiciar a prática para as pessoas de lá. Vocês podem sentar para meditar e ler textos. Temos grupos assim em várias cidades e estados do país. Em Joinville me mandaram uma foto com o texto: “Sentamos em Zazenkai”. E havia três pessoas. Isso é o Dharma funcionando. Isso é um gesto admirável, entendo bem como é isso, pois em Porto Alegre muitas vezes me sentei sozinho. As pessoas não desejam ir para onde as ilusões lhes são tiradas e sim onde exista uma grande oferta de compensação. Se oferecer milagres então, é certeza de casa cheia. Como o Zen não faz esse tipo de oferta, sempre há poucas pessoas. Nós precisamos de pessoas que facilitem o ensino do Dharma. Não é necessário muita coisa, apenas um espaço com almofadas e muita disposição para sentar, inclusive sozinho. Conta-se que Bodhidharma ficou tanto tempo sentado sozinho em uma caverna que a parede da caverna ficou com a marca de sua sombra.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Para os que se sentem desamparados no zen


É comum as pessoas me escreverem quando começam a praticar dizendo estarem perdidas e sentindo um grande desconforto. Outro dia recebi um email em que a pessoa dizia ter um vazio dentro de si que não sabia como preencher. O que acontece é que o Budismo é um método que começa com uma desconstrução completa daquilo que as pessoas costumam usar como bengala ou apoio. Quando começamos a ensinar o Dharma, as pessoas perdem seus referênciais tais como: “A quem pedirei algo? Quem pode me ajudar, Buda? Existem anjos ou seres celestiais que possam me ajudar?” A mensagem do Zen é que não há ninguém lá fora para quem você possa pedir ajuda, nem à Buda, que foi um homem com nós.

Outras escolas Budistas são mais piedosas e dão ao praticante algo a que se agarrar, como por exemplo, o Bodhisattva da Compaixão ou Buda Amida. Muito embora se formos fundo no estudo destas escolas, veremos que esses seres não são exatamente alguém lá fora. Isso é muito bonito no sentido de existir uma fé e este processo é bastante consolador. Mas o Zen não é consolador e é chamado de “O Caminho Direto”, pulando todos os estágios de prática, levando diretamente a um confronto consigo mesmo e com a vacuidade do “eu”. A única coisa oferecida pelo Zen na qual o praticante possa se apoiar são suas próprias ações.

São com as suas ações que um praticante Zen Budista pavimenta o caminho que ele irá percorrer. A cada pedra colocada, o praticante pode avançar no caminho. Ele pavimenta o caminho com a construção de seu próprio carma, portanto, ele altera seu carma e com isso no Zen tiramos a responsabilidade ou o poder sobrenatural de qualquer outro ser lá fora. Nós temos os poderes sobrenaturais para a construção de nossas próprias vidas. Desta e das futuras. Como? Através de seus pensamentos, atos e palavras, através da construção de seu carma.

Alguns praticantes, quando lhes tiramos as ilusões, sentem-se desapoiados. Onde me apoio? Porém, mesmo no Zen existe um apoio e esse apoio chama-se Sangha. Apoiando-se na Sangha ele não está só e, além disso, ele tem ainda pais, irmãos e amigos. Quando ele diz que sente um vazio dentro de si difícil de preencher, lhe falta engolir o universo, pois ainda vê as coisas de forma separada e dual. “Eu estou separado, eu sinto um vazio”! O sentimento de solidão irá acabar quando ele conseguir pôr fim à dualidade, quando não mais enxergar o “outro” e “eu”. A solidão só existe com a separação. Vocês percebem que com frequência falo de meu Mestre, Saikawa Roshi? Por quê? Porque ele me é precioso. A última vez que esteve em Florianópolis fomos caminhar na praia e cada concha, cada pequeno peixe ou água viva que ele encontrava na areia, devolvia ao mar. Acredito que este seja verdadeiramente o sentimento de estar junto com todos os seres. Esta é também uma marca constante no praticante, a referência ao Mestre, porque quando fala no Mestre está dizendo “minha família”. Essa ligação que temos com o Templo sede, com nosso Mestre e até mesmo com templos de fora do Brasil, nos coloca na sensação de unicidade, desta forma nunca estamos sós.

Aqueles que se sentem desamparados quando iniciam a prática, ainda não perceberam o quão acompanhados estamos. Mas é necessário vir à Comunidade, sentir a prática coletiva e escutar seu professor. Isso é muito importante.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Pensar além do pensar e não pensar


Pergunta – Qual a diferença da consciência para o “eu”?

Monge Genshô – O “eu” é uma noção construída, segundo o Budismo, de percepção individual. Um “eu” separado de todo o resto. Esta estrutura que observa o mundo, o vê e se pensa separada, é o “eu”. A consciência, que não é uma palavra adequada, significa coesão de um quantum cármico, é nossa onda que continua se manifestando.

Pergunta – No Zen o “não pensar” passa a ser involuntário e inconsciente?

Monge Genshô – “Não pensar” não é uma colocação adequada. Na verdade não se trata de “não pensar”. A expressão mais antiga e que melhor se aplica é “pensar além do pensar e do não pensar”.

Você está em zazen mas está consciente do som do mar, do vento nas árvores, dos pássaros, dos seus colegas sentados à sua volta, portanto existe uma forma de pensamento nisso. O que se pede na verdade é não elaborar, não julgar, não cogitar e não atribuir. Se você ouve o mar e fica enumerando as ondas e colocando-as numa ordem dentro do seu zazen, isso deixa de ser zazen, pois você está elaborando e cogitando algo. Todo o tempo que você está cogitando dentro do zazen é um momento perdido. Seu corpo está imóvel, mas sua mente está em movimento. Quando você consegue ouvir os sons sem cogitações e julgamentos, simplesmente estando aqui, isso é samadhi e portanto é o zazen que estamos procurando. Se você conseguir um minuto disso, já grande evolução e é fundamental para criar um espaço na mente onde uma percepção realmente profunda possa se instalar. Enquanto sua percepção for pensada, julgada, raciocinada e cogitada, estará cheia de preconceitos e elaborações mentais e não estará suficientemente vazio para perceber o mundo como ele realmente é.

Por isso é difícil de entender declarações de Mestres Zen do tipo: “As coisas são como são e o mundo é como é”, pois isso só é compreensível para quem tem a experiência de samadhi. Se você coloca qualquer tipo de julgamento seu no processo do entendimento, o mundo já não é como é. Veja o exemplo que dei quando expliquei a cerimonia com Oryoki, receba toda a comida que vem e não pense em gosto ou não gosto, por quê? Gosto e não gosto é uma elaboração mental ou um condicionamento relacionado a algo de seu passado que eu coloco ou ligo ao alimento recebido. O recebimento do alimento é uma experiência pura que não precisa ter todas as elaborações que fazemos. Quando coloco as elaborações, eu modifico minha mente e modifico a experiência.

O que quero dizer é que quanto mais pensamos, julgamos e raciocinamos mais distantes estamos da experiência real que é sentado no zafu fazendo zazen, pois o que temos aqui agora são explicações teóricas que são percebidas de formas distorcidas dependendo do entendimento de cada um, que percebe ou escuta, obviamente, minhas palavras e as interpreta conforme suas próprias experiências pessoais.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O mundo é o mesmo a diferença é o olhar


Pergunta – Antes da manifestação na forma, haveria além do carma, a consciência?

Monge Genshô – O que chamamos de “consciência” é a onda cármica se movimentando. Não estamos falando de consciência de um “eu”. Esse é o problema da palavra consciência, precisaria existir outra palavra. Eu prefiro a expressão “manifestação cármica” ou “onda cármica”. Não há um “eu” e sim movimento, e é esse movimento que gera uma identidade. Porque você não se lembra do passado? Porque não há memória, pois a onda cármica não carrega a memória da vida passada.

Teoricamente tudo no universo está registrado e mantido, porque o universo sendo uma manifestação do que aconteceu antes, é ele próprio o registro do passado. Quando olhamos a Terra sabemos que aqui já viveram dinossauros, que houve períodos gelados, chuva de meteoros etc., podemos saber disso tudo, pois tudo está registrado no evento presente que contém o passado. Esse passado pode, então, ser acessado, mas não carregado como uma memória por uma manifestação cármica.

Pergunta – Isso me fez lembrar a palestra de ontem onde o senhor falava sobre o gás e o explorador e de que ao comermos o arroz, toda a história do universo está ali. É esse acesso que Buda teve, ou seja, conseguiu ver além da forma e do vazio?

Monge Genshô – Sim, existe na Escola Yogacara o conceito de “Alaya Vijnana”, que é a consciência depósito do universo. Se você conseguir acessar essa consciência, terá acesso a suas vidas anteriores. Porém está lá e não em você. Você terá o acesso a esse arquivo que você mesmo é parte. Não há nada de milagroso dizer que alguém possa recordar suas quinhentas manifestações anteriores. Dentro desse raciocínio não. Mas repetindo, essas coisas não são dogmas ou artigos de fé, são elaborações teóricas construídas pelos filósofos Budistas ao longo de milênios. Eles tinham que construir uma filosofia em cima de uma não-crença, sem um criador ou coisas desse tipo.

Pergunta – Ainda sim tudo isso é uma teoria.

Monge Genshô – Exato, faz parte da filosofia Budista. Cada escola Budista tem um arcabouço diferente. A Escola Yogacara, que influenciou muito o Zen, vai ao extremo de dizer que tudo não passa de consciência, é minha consciência quem cria a realidade, cria essa mesa e essa xícara, mas no Zen essa idéia não foi adotada nesse nível. Essa xícara existe independente de mim, mesmo que eu desapareça, a xícara continuará aqui. A única coisa que posso dizer é que a xícara deixará de ser uma xícara, ela poderá ter todas as características de xícara, porém se não existirem os seres que a vejam como tal, um recipiente para bebidas com uma alça, ela deixa de ser xícara, será apenas um pedaço de cerâmica.

Se olharmos as coisas sem nossa consciência não sabemos sua finalidade. Uma xícara só é uma xícara porque tem uma função de xícara que nós lhe damos. Vamos supor que toda a civilização desaparecesse do planeta Terra e seres de outro planeta aqui chegassem. Vamos imaginar o relatório desses cientistas visitantes: “existiam seres que habitavam pequenas casas e a julgar pelo tamanho dessas moradias esses habitantes tinham uma altura que variava entre um metro e setenta a dois metros. Porém encontramos edifícios maiores nos centros com portas de mais de dez metros de altura. Isso pode significar que existiam outros seres maiores, que moravam nos centros, eram importantes, pois moravam em casas maiores e especiais e eram muito maiores que a maioria da população”.

Nós que sabemos a função das catedrais temos outra leitura. Do ponto de vista do Zen, nós construímos nossa interpretação e percepção das coisas com a nossa mente, mas as coisas existem independentemente de nossa mente, o que muda é nossa interpretação e esta depende da mente. Por isso pela mesma mente uma pessoa pode andar nesse mundo e julgá-lo um lugar maravilhoso e outra pessoa no mesmo caminho e no mesmo lugar ver todas as coisas como horríveis e sem sentido.

O mundo é o mesmo, o que é diferente é a mente das pessoas. O que estamos fazendo quando praticamos zazen? Treinando para mudar a mente, pois mudando a mente mudamos o mundo, foi isso que Shakyamuni Buda disse: “Que maravilha, eu a grande Terra e todos os seres nesse momento atingimos a iluminação”. Tudo mudou porque o olhar dele mudou. Temos que tirar nossos olhos deludidos e colocar os olhos de Buda e passar a ver o mundo de outra forma, uma coisa que era obscura e sem sentido, transforma-se em algo maravilhoso e profundo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Anatman


Pergunta – O mundo sem forma é uma manifestação de pura consciência. Mas o Budismo sendo anatman, qual seria a diferença entre atman e a consciência?

Monge Genshô – A diferença é a noção de um “eu”. Para o Budismo a vida é uma sucessão de momentos de consciência. Não existe um ser que carrega uma consciência continua, é como num filme, você tem um quadro que é um momento, outro quadro que é outro momento e assim sucessivamente num total de vinte e quatro quadros por segundo no cinema e vinte e cinco na televisão. Essa sucessão de quadros, um após o outro, faz com que tenhamos a sensação de continuidade, não parece que temos um quadro após o outro e sim que há movimento ou continuidade.

Isso que tomamos como nossa consciência não passa de uma sucessão de consciências uma após a outra, mas não percebemos a descontinuidade disso. Estamos presos na ilusão de sucessões de momentos de consciência. A memória é que nos informa sobre os momentos de consciência e estrutura nosso “eu” e então pensamos “eu sou”.

Evidentemente se o carma prossegue e se manifesta numa outra vida, existe uma coesão que une um carma e a isso às vezes chamamos “consciência” no Budismo, mas não é a consciência de um “eu”.

Existe um quantum que irá se manifestar, uma coesão, mas você não pode dizer “sou eu”. É você, mas não é você. O “eu” não está ali e, apesar de existir algo que continua, esse não é um “eu”, pois um “eu” não pode continuar. Isso é o que significa “anatman”, não há uma partícula eterna que carrega outras coisas. É o próprio movimento que faz os acontecimentos, é o carma se movimentando que gera uma manifestação que diz “eu sou”, isso é “anatman”, não eu.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Reinos superiores e inferiores



Pergunta – Em um retiro anterior o senhor mencionou os seis reinos. Eu gostaria que o Senhor falasse um pouco sobre os reinos iluminados e se esses reinos são uma condição para se chegar ao Kenshô ou são o próprio Kenshô?

Monge Genshô – O fato de existirem planos superiores não importa para nós, não precisamos acreditar nisso. Se atingirmos a iluminação, a cosmologia Budista diz que existem outras formas de manifestação e outros mundos superiores a este. Outras escolas citam trinta e dois mundos, desde o mundo dos infernos até o mundo dos Budas, seres completamente iluminados. Nessa cosmologia são criados estágios cada vez mais elevados, o estágio que nos encontramos seria um estágio de manifestação ainda na forma e haveriam estágios de pura consciência sem forma.

Provavelmente existem mundos de manifestações mais sutis e mais felizes que o mundo onde estamos agora. O estágio de um Buda é onde a manifestação cessa. Para o Budismo, voltar para cá é uma forma de prisão. Somos prisioneiros de impulsos e desejos e por isso retornamos para cá. Mas mesmo nessa manifestação podemos experimentar mundos distintos, por exemplo, esse mundo do Dharma, do sesshin, é um mundo diferente do mundo lá fora. Esse mundo é tão distinto e melhor que se fazemos um sesshin longo, não temos mais o desejo de votar para o mundo lá fora. É essencial que compreendamos que nossa manifestação é uma forma de prisão condicionada pelo nosso carma, nossos impulsos. Existem mundos inferiores e superiores, como eles são não nos importa, o que importa para nós é a prática de agora.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O zen ocidental



Ainda hoje no extremo oriente existe uma distinção entre Monges e leigos. Na China, o Chan não é como o Zen que conhecemos, eles têm, por exemplo, práticas devocionais para os leigos que recitam orações para Buda e o zazen é somente para os monges. No Japão surgiu uma prática leiga e até existiram professores respeitados do Zen que eram leigos. A grande mudança aconteceu no ocidente e Shunryu Suzuki disse que no ocidente os Monges são um pouco leigos e os leigos são um pouco Monges, como é o meu caso,  Monge Zen e tenho uma profissão fora da Sangha.

No Japão, normalmente, os leigos não fazem sesshin. Aqui no ocidente os leigos recebem orientação teórica sobre a doutrina Budista em um nível que mesmo os Monges no oriente não recebem. Os que estudam o Zen são os que vão para a universidade. Aqui os leigos escutam o que os Mestres diziam para os Monges, porque antigamente os leigos eram poupados dos terríveis ensinamentos do Zen que sacodem e derrubam as estruturas nas quais as pessoas se agarram. Essa é a característica que está tomando o Zen ocidental. Nós que vivemos dessa forma não percebemos o quão excepcional é esse Zen. Por esse motivo eu vejo todos como praticantes admiráveis, mas os patriarcas dedicavam sua vida ao Dharma de forma integral.

O ensinamento era passado de um a um, essa era a transmissão e a forma de dizer que o aluno tinha a mente do Mestre. Com o ato de entregar o manto e a tigela, o Mestre reconhecia a compreensão do aluno como igual à sua. “Hui Neng”, que foi um grande Mestre chinês, deu a transmissão para cinco discípulos e somos descendentes de um desses alunos, “Seigen Gyoshi”. Quando andamos para trás nos apoiamos em nomes de grandes Mestres fundadores que dedicaram sua vida inteira ao ensino do Dharma e conseguiram passar a transmissão para algum aluno. Quando um Mestre não consegue passar a transmissão, sua linhagem morre.

Dos alunos de “Hui Neng” somente duas linhagens sobreviveram. Isso mostra como de certa maneira o Dharma é frágil. Um exemplo bem claro disso é a linhagem feminina que foi totalmente extinta, obrigando as mulheres Monjas de hoje a tomarem refúgio em linhagens masculinas. Não existe uma linhagem feminina que se possa recuar até Prajna Pati, a primeira Monja histórica, que era tia de Buda. Se eu não conseguir dar a transmissão para nenhum aluno, minha linhagem morrerá.

Quando recitamos os nomes de Shakyamuni até Saikawa Roshi, estamos dizendo que reverenciamos esse difícil trabalho de transmitir o Dharma. O Budismo poderá desaparecer quando não houver transmissão, a transmissão for falsa ou baseada na forma e em rituais. Um antigo Sutra fala disso, dos três estágios do Dharma. No primeiro a iluminação, a forma e o ensinamento estão presentes. No segundo, com o passar dos séculos o ensinamento, a forma e os rituais estão presentes, mas a iluminação não, a experiência mística desapareceu. No terceiro estágio ainda existem os Monges e a instituição, que ainda sabem os rituais, mas o ensinamento e a iluminação estão perdidos e nessa fase de decadência chamada “Mappô”, o Dharma morre.

Dizemos no Zen que isso é didático e que a iluminação é possível agora, pois temos todos os elementos e o Dharma está vivo. O único sentido de praticarmos é o de procurarmos esse despertar dos sonhos. Se despertarmos dos sonhos das ilusões, todas as raízes do sofrimento são cortadas. Se virmos os aspectos ilusórios da vida, a raiz do medo de morrer desparece, pois eu vejo que o meu “eu” é uma construção ilusória. Essa é a essência do Dharma.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O manto e a tigela


Na palestra de ontem falávamos sobre uma mente agradecida e toquei muito rapidamente na sequência dos Mestres na recitação nas cerimonias. Os Mestres e ancestrais são, no Zen, fonte de enorme inspiração, por isso muitas tradições são mantidas através dos tempos.

No tempo de Buda o manto o “kesa”, era feito de retalhos e os mais valorosos eram feitos de tecidos rejeitados. Depois de costurados, eram tingidos de uma única cor e conta a história que o manto de Buda foi tingido de açafrão, por isso o manto Budista é dessa cor de “terra” ou amarelo.

O “kesa” era a única roupa dos monges e eles não poderiam possuir mais do que quatro mantos, dependendo do clima onde morassem. A tigela de mendigar era outro bem permitido aos monges e essa é a origem do Oryoki. Como a Índia era um país rico em alimentos, a mendicância era permitida. Hoje na ordem Soto Zen, mendigar é uma prática feita apenas em alguns dias, no Brasil nunca vi isso ocorrer, mas é uma prática que se remete aos tempos de Buda.

Na China e no Japão a mendicância não é uma prática bem vista e em razão disso houve uma adaptação. Uma das adaptações foi a construção de mosteiros e em seguida os monges começaram a cultivar a terra e produzir sua própria comida. Nos tempos de Buda aos monges não era permitido trabalhar, nem mesmo lavrar a terra, não poderiam exercer nenhuma atividade produtiva e deveriam ser sustentados pela Sangha.

Na China o Budismo transformou-se em monástico e cenobítico, ou seja, vivia-se em comunidades. Havia o monastério, o Mestre estava lá e os praticantes se reuniam à sua volta. O monastério era de certa forma auto suficiente. Uma crítica que o Budismo do sul da Ásia faz ao Budismo do norte e do extremo oriente é de que os Monges não são dependentes da Sangha e com isso ficam mais distantes dela. Os Monges do tempo de Buda viviam de maneira simbiótica com a Sangha e se esta não os sustentassem, eles morreriam.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Eus e reencarnação


Pergunta – O fato de não nos lembrarmos de nossas vidas passadas tem uma função, não é?

Monge Genshô – Podemos pensar desta forma. Desde o momento que não há um “Eu”, pois este é uma construção, não há ninguém para carregar uma memória. Se houvesse um portador de memória, haveria a continuidade de um “Eu”.

Pergunta – Posso supor depois das suas explicações que existe reencarnação?

Monge Genshô – De quem? Se não existe um “Eu” como pode haver reencarnação? Se memórias não permanecem, reencarnação de quê? O que reencarnaria? Reencarnação é uma palavra que não serve ao Budismo. Reencarnação significa que um “Eu” carrega uma nova vida e ganha uma nova carne. Se dizemos que não há almas ou espíritos e que as memórias desaparecem com a morte, então o que há para reencarnar? Só restam impulsos, que é o que chamamos de carma, o movimento do universo. Esse movimento produz novas identidades, novos seres. É o carma que produz manifestações, não são as manifestações que carregam carmas. Essa definição cabe ao espiritismo onde um espírito carrega carma e vai ganhando novos corpos e é dessa definição que vem também a noção de missões, resgates e um progresso permanente. Prefiro falar em nova manifestação cármica, outros professores em renascimento. 
No Budismo nem mesmo essa noção de progresso permanente existe, pois você pode regredir. É muito fácil destruir sua vida, você pode nascer numa condição muito boa, boa família, bom emprego, bom casamento. Mas basta você se viciar em drogas e poderá acabar perdendo tudo isso. Outro detalhe é que os universos são cíclicos e nada é permanente, nada irá durar para sempre.  Há continuidade mas não de um eu.

Pergunta – Eu penso na questão da fé, que é uma questão cultural e social. Acreditar no que “a priori”, não pode ser comprovado ou investigado...

Monge Genshô – A proposta do Budismo é outra, não se trata de fé e sim de uma grande dúvida. Não tenho nenhuma solução para lhe dar e, portanto, você não tem onde se agarrar. Você está sozinho, sem anjos ou deuses pra lhe ajudar e em suas mãos está o poder de construir seu próprio caminho. O que posso te oferecer no Zen é um método de treinamento.

Pergunta – Mas a doutrina do carma, se é que pode ser chamado assim, não é uma questão de fé?

Monge Genshô – Não. Veja bem, você poderia me apontar um efeito sem causa?

Pergunta – No mundo fenomênico não.

Monge Genshô – Então você sabe que não existe causa sem efeito, essa é a maior declaração de Buda a respeito do carma. Carma significa ação. “Carma Vipaka” é “fruto da ação”. Se você encontra cacos de uma xícara no chão, irá concluir que alguém deixou cair, os cacos são frutos de uma ação. O carma não precisa de fé, ele é auto evidente, ação e consequência. A definição de fé é a firme convicção em algo que não se vê ou ouve, ou seja, acreditar em algo sem qualquer evidência. Para o Budismo isso não faz qualquer sentido. “Teste”, disse Buda, “se funcionar para você, está ótimo”.