segunda-feira, 31 de março de 2014

O futuro com melhor tecnologia


4) Da forma que vivemos estamos sempre insatisfeitos, somos estimulados ao consumo sempre de novos e mais modernos produtos. A essência como o senhor falou, é a satisfação, mas isso não nos levará a um comodismo?

Monge Genshô – Não, não levará. Nós estamos subestimando o que vai acontecer conosco. As pessoas que querem regredir e voltar para uma vida do machado, não sabem como era nessa época. Nenhum índio que conheça a civilização deseja voltar a sua vida tribal. As pessoas morrem com vinte e poucos anos em média e mais da metade das crianças morre antes de completar um ano. Fome e frio são situações frequentes. Nós tivemos conquistas maravilhosas com a civilização. A libertação feminina é uma destas conquistas que veio com a revolução industrial. Antes disso, rachar lenha era trabalho para homem. Antes da medicina desse século tínhamos mais homens que mulheres, pois a mortalidade de mulheres no parto era enorme. Vivemos hoje quase o dobro do que vivíamos na década de quarenta. A solução para a humanidade não é menos tecnologia, o problema é que a tecnologia que empregamos é pobre e muitas vezes burra e destruidora, mas é perfeitamente possível ter casas auto-suficientes energeticamente, não precisamos produzir tanto lixo, não precisamos lançar os dejetos no mar, não precisamos matar para comer pois, com a tecnologia disponível hoje, muitas coisas não seriam necessárias.

Com mais tecnologia podemos consumir de forma diferente, mas precisamos de educação e conhecimento, porém, a humanidade está à beira de passar por uma situação que é a extinção do trabalho. Mais algumas décadas e a maior parte do trabalho será feito por máquinas com inteligência artificial e muitas das profissões que conhecemos terão se extinguido. Nesse momento, os homens terão que olhar para si mesmos e perguntar qual o sentido da vida. Já vivemos situação parecida na época dos escravos na qual uma pequena parcela da população, cerca de 10%, era cidadão, isso aconteceu em Atenas. Cada cidadão ateniense tinha nove escravos e ele não precisava fazer nada. Como resultado, a Grécia produziu filosofia.

Teremos que descobrir novas coisas para fazer, pois toda nossa educação irá mudar totalmente. As religiões sofrerão enorme crise, pois iremos perguntar se um cérebro eletrônico que é capaz de pensar e atinge auto consciência, tem alma ou não, está vivo ou morto e quem ele é. O budismo tem a resposta para isso, mas as religiões com almas não. As pessoas estão sendo invadidas por tecnologias cada vez mais sofisticadas sem que elas mesmas decidam como será seu mundo. Outras pessoas estão decidindo por elas, algumas poucas pessoas estão decidindo por todas as outras. Não vejo como isso poderá mudar, pois se você pergunta para uma pessoa ela olha para o passado, como na idade do ouro, mas estão enganadas sobre isso. A humanidade sempre olhou para o passado pensando ver uma idade dourada, isso sempre aconteceu, em todas as eras. Talvez esse seja o momento de olhar para o futuro e o budismo está preparado para isso, pois ele não busca ilusões e sim lucidez e clareza. Não desejamos santos ou pessoas iludidas, queremos homens e mulheres despertos, lúcidos e com clareza mental. Isso pode mudar o mundo.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Um balde de água gelada


2) Como é possível saber que se está no caminho certo?

Monge Genshô – O seu caminho não é o meu caminho. Eu posso lhe passar informações sobre o meu caminho, sobre as coisas que aprendi e isso pode lhe ajudar. Mas você precisa percorrer o caminho, pois eu não posso andar por você. Tudo que posso fazer é dizer que para mim funcionou desta forma. O budismo é experiencial e possui métodos para isso, mas a experiência tem que ser sua. O professor ajuda muito, às vezes estamos com um problema meses a fio sem resposta e apenas uma frase do professor parece dissolver o problema. Mas o professor não é de forma alguma a fonte da verdade.

3) Como posso saber que a experiência que tive não é apenas mais uma ilusão?

Monge Genshô – Dê um exemplo.

Aluno – Uma noite na semana passada que eu estava sem sono, não tinha nenhum problema, apenas sem sono. Pensei no filme de Dogen e sentei pra meditar. Não coloquei o relógio para estipular um tempo, apenas sentei por sentar. Comecei então a perceber coisas que nunca havia prestado atenção, não foi nada extraordinário ou fantástico e sobrenatural. Foi mais simples e intenso. Em dado momento não havia nada na mente, sentia e não sentia meu corpo ao mesmo tempo. Era como se tudo fizesse parte de uma única coisa. Não consigo explicar muito bem o que eu vi nesse momento, pois eram as mesmas coisas, mas pareciam diferentes. Era o mesmo quarto familiar, mas não do mesmo jeito que sempre o vi.

Monge Genshô – Essa foi uma boa experiência. Se você contasse qualquer coisa sobrenatural eu diria que foi uma ilusão. É interessante falar sobre o sobrenatural. As pessoas buscam experiências sobrenaturais. O Zen não trata muito bem o sobrenatural. Uma vez um discípulo disse a seu Mestre que sentava para meditar e os discípulos de Buda davam voltas ao seu redor. O Mestre mandou que lhe jogassem um balde de água gelada e os discípulos desapareceram. Na realidade, isso que acontece aqui agora, estarmos sentados olhando uns para os outros, cada um de nós com um corpo de uma espécie de primata com poucos pelos, eu estar falando, isso é sobrenatural, beber chá é sobrenatural, tudo à nossa volta é sobrenatural e as pessoas ficam procurando extraterrestres. Isso é uma loucura. Todos somos extraterrestres. Como poderíamos supor que um parente de chimpanzé poderia falar e ensinar matemática, construir casas e aviões? Isso é tudo sobrenatural. Não existe ninguém lá fora para nos ajudar, nem anjos, demônios ou deuses. Estamos todos juntos nessa sala, anjos, demônios e deuses. Como não enxergamos que isso é sobrenatural?

quinta-feira, 27 de março de 2014

“As palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana é capaz de entender, o que não é muita coisa”


1) Essa segunda condição que o Senhor citou, uma pessoa ignorante que não tem o conhecimento do Dharma mas atinge a iluminação, ela necessariamente tem que estar ligada à alguma religião?

Monge Genshô – Ela pode estar ligada à uma religião, o budismo não é proprietário da iluminação. Outras religiões podem propiciar um caminho para o esclarecimento. Isso é muito fácil de comprovar vendo os escritos pois, quando vemos algo escrito por uma pessoa, podemos avaliar se é ou não algo feito por alguém que experimentou o despertar. Mas isso não significa santidade. Uma pessoa pode viver uma vida de santidade, mas não estar desperto. Pode até ser um mártir e não estar desperto. Ele pode por exemplo se sacrificar, levar uma vida reclusa e de santidade, mas com o propósito único de obter uma salvação para si, para “ele” ir para o céu. Esse é um objetivo egóico e significa um não esclarecimento, um não despertar. Mas posso citar místicos cristãos com uma clara experiência de despertar: Meister Eckhart, por exemplo, no século XIII e também São João da Cruz. É fácil perceber em seus escritos que eles obtiveram uma experiência espiritual de despertar. O essencial é não pensarmos que o budismo tem a “verdade”. O budismo é um método e a verdade é evanescente. 

Aluno - Qual a recomendação para iniciantes?

Monge Genshô – Ler um pouco. Aprender a sentar. Olhar sua mente. Tornar-se consciente de seu fluxo de pensamentos e sentimentos. Muita coisa muda quando começamos a perceber o quê e de que forma pensamos. Podemos descobrir, por exemplo, que não somos exatamente como ou quem pensávamos ser. Essas experiências começam no zazen, de frente para a parede é como se víssemos uma fotografia de nossa mente. Você pode descobrir que é capaz de transformar a sua mente e com isso alterar seu carma. Mudando o carma, tudo pode mudar. Você é professor de matemática, não é? Matemática é interessante. Muitas pessoas imaginam que matemática é certa e partindo de determinados axiomas construímos edifícios e dizemos que isso é matemático, certo, indiscutível.

No século XX passamos para outros estágios da matemática e isso mudou nossa noção sobre o universo e nossa capacidade de saber determinadas coisas. Porém este já é um discurso budista de dois mil e seiscentos anos atrás, não tínhamos então certos instrumentos para investigar a realidade. Estou falando e tentando comunicar algo, mas essa comunicação sempre será falha. Eu li uma frase bem interessante que diz: “As palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana é capaz de entender, o que não é muita coisa”. Essa frase é fantástica, pois realmente acreditamos que somos capazes de entender a realidade e fazemos discursos, escrevemos textos e livros. A realidade só pode ser compreendida através de uma experiência direta, a experiência comunicada é obrigatoriamente produto semiótico, produto de símbolos e representações. Por isso que as pessoas dizem que ouvem o Dharma e não entendem. Mas é possível perceber certo entendimento nas pessoas  que não é perceptível através meramente das palavras.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Três formas de prática


Vou conversar com vocês sobre três formas de prática, que na verdade são três caminhos ou veículos. Veículo diz-se “Yana” e o primeiro veículo é “SRAVAKAYANA”, que é o caminho daquele que aprende através da compreensão dos ensinamentos, sendo que três ensinamentos básicos precisam ser muito bem entendidos para que consigamos uma libertação do sofrimento.

O primeiro é “Anitya”, ou seja, a impermanência. A primeira compreensão então é a compreensão profunda da impermanência. Se colocarmos nossa felicidade na permanência das coisas, certamente iremos sofrer. Quem aposta na beleza da juventude sofre, pois todos ficaremos velhos.

O segundo ensinamento que precisamos compreender é “Anatta”, de que nada tem um “eu” inerente. Todos os “eus” são construídos. Lembro-me de meu tempo de juventude quando tínhamos um fusca e lhe demos o nome de Pitanguinha. Lembro-me até hoje do dia em que o vendi e fiquei muito triste, mas na realidade ele nada mais era do que ferro, lata, motor, borracha e óleo. O carro havia ganhado um “eu”, era o Pitanguinha. O “eu” do carro é tão falso e construído como nosso próprio “eu”. Nós somos constituídos de pele, unha, ossos, carne, água e células, mas pensamos que temos um “eu” próprio. “Anata” é o ensinamento que não existe nenhum “eu” verdadeiro em coisa alguma, todos são construídos e entender isso, essa noção de separação de todas as coisas, que é uma construção mental, é um trabalho que exige lucidez e clareza.

O terceiro ensinamento para os Sravakas, aqueles que seguem o caminho de Sravakayana, é “Dukkha”, segundo o que toda a vida é insatisfatória, ou seja, nunca estaremos satisfeitos. Tudo que existe no mundo e que ambicionamos, logo depois de conquistado parece não ser mais o mesmo. As pessoas que desejam muito um filho, casam-se, têm o filho e este torna-se então a fonte da insegurança, sofrimento, ansiedade e até mesmo fonte de pesadelos em razão do medo de sequestros, doenças e morte. Esses sofrimentos são muito reais e de nada adianta explicar para  as pessoas que são sofrimentos construídos. Mesmo as coisas mais belas da vida estão sujeitas à “Dukkha”, não significa sofrimento, mas sim que a vida é cheia de sobes e desces, felicidade e infelicidade, riqueza e pobreza, saúde e doença.

Estava lendo sobre a vida de Bobby Fischer que em 1972 foi campeão mundial de xadrez. Desde os seis anos de idade era apaixonado por xadrez e em 1972 teve a oportunidade de desafiar o campeão mundial, Boris Spassky, um Russo que vinha de anos de vitórias, e o venceu. Depois desse ano ele não conseguiu jogar outros campeonatos, pois chegara onde jamais imaginara chegar, era campeão do mundo. O que aconteceu foi que logo após ter sua grande conquista, seu maior objeto de desejo, isso se dissolveu em suas mãos e tornou-se fonte de sofrimento. Viver num mundo fugaz de impermanência, pisando num chão que constantemente se modifica é um grande desafio, mas os Sravakas, compreendendo perfeitamente essas coisas, atingem a iluminação. Se tornam aqueles que através do ensinamento conseguem atingir a libertação, livrando-se de toda dor e sofrimento. 

O segundo Yana que eu quero comentar é “PRATYEKABUDHAYANA”. O “PRATYEKABUDHA” é alguém que não conhece um Mestre mas sozinho através da prática e da virtude, alcança sabedoria e iluminação. Ele não consegue ensinar pois não tem o conhecimento do Dharma, mas possui um esclarecimento interno. Vocês poderão encontrar esse tipo de pessoa, às vezes ignorantes dos conhecimentos formais do mundo, que mesmo sem mestre conquistaram sabedoria, eles não podem ensinar, mas através do seu exemplo e gestos, influenciam o mundo. Esses são os “Pratyekabudhas”.

O terceiro Yana é o “BODHISATTVAYANA”, que é aquele que segue o caminho de desenvolver uma grande compaixão e dedica sua vida a ensinar e ajudar as outras pessoas a escapar do sofrimento. Esse, o Bodhisattva, faz os votos que recitamos no final do zazen. O caminho de Buda é o caminho do Bodhisattva e sua atuação foi tão intensa que sobrevive até nossos tempos, ou seja, dois mil e seiscentos anos depois, estamos nós aqui falando de seus ensinamentos. Esse é o veículo ideal do Mahayana.

terça-feira, 25 de março de 2014

As angústias fabricadas


As angústias do mundo são em sua maioria fabricadas. Você acredita em nome, forma, roupa, bens, você acredita em todas essas coisas e sofre por elas...

Comentário – O ser humano é feito disso, só num momento de libertação último é que consegue se livrar de todas essas coisas...

Monge Genshô - É disso que estamos falando, o monastério serve para a pessoa descobrir que a maior parte disso que dizemos, “eu preciso”, é fantasia. Porque, na realidade mesmo, não precisamos. Você precisa porque todos esperam que você tenha carro, casa própria, família, mas quando você está num mosteiro descobre que é possível dormir no mesmo lugar que você medita, é possível não ter quarto, é possível não ter privacidade, é possível não ter seu próprio banheiro.

Comentário –  é assim, onde vou morar, vou morar na comunidade budista de Florianópolis, então largo tudo e peço ao monge para dormir no zendo e a comunidade é que me sustenta?

Monge Genshô - É que vocês estão pensando que esse é um modelo para a existência, o monastério, e o mosteiro Zen é diferente do mosteiro católico. Em um mosteiro católico você vai para viver a vida inteira, então é muito mais confortável. Num mosteiro Zen você vai para treinar por um período curto, não se espera que um monge em formação fique mais que dois anos num mosteiro, três anos é o máximo. Ele terá uma vida mais dura no primeiro ano, no segundo ano está mais acostumado e no terceiro já estará cuidando dos outros. É um lugar para descobertas, não um modelo de vida. Se fosse um modelo de vida, o monge teria que ser mendicante e não ter ligação com nada. Por isso a designação “Monge” no Zen está errada. Não se trata de monges verdadeiramente, somos “Ministros do Dharma” ou “Reverendos”.

Quando você vai para o mosteiro, vive o celibato, mas quando sai, casa e tem família e muitas responsabilidades, por exemplo, aqui, se um monge quisesse realizar esse tipo de trabalho, teria que receber dinheiro da Sangha, senão como sobreviveria?

5) Qual a utilidade desse processo todo para a humanidade?

Monge Genshô - Essa é uma excelente pergunta. A humanidade mudou por causa dos mosteiros.  Em razão da existência dos monastérios é que a Europa mudou completamente. Os monastérios foram responsáveis por copiar livros, guardar conhecimento, educar, serviram de refúgio, foram as primeiras escolas e inspiradores das universidades. Isso também aconteceu no budismo. Em razão da existência de monges e monastérios, aconteceram estudos filosóficos, surgiu a Universidade Nalanda, na Índia, para preservação do conhecimento, os monges lutavam por paz entre os povos, criou-se na Índia, em razão do budismo, um longo período de paz. Se olharmos para o cristianismo, veremos que os monastérios preservaram a alma do cristianismo. Porque, pelas lutas de poder do papado e guerras internas, o cristianismo já teria desaparecido. O cristianismo ficou refugiado em homens como São Francisco de Assis, Santo Inácio de Loiola, Santa Teresa D’Avila. Essas pessoas estavam nos monastérios.


7) Voltando àquela questão anterior.  Então é mais um treinamento para que as coisas desejadas não sejam tão grandes. Não é que você não deva desejar, não deva querer, mas não precisa ter tanto apego...

Monge Genshô - Tem que tirar o “tanto”. Na realidade pode ficar plenamente liberto disso. Ter um carro é muito bom, não ter, tudo bem também. Não é esse o problema. Não existe um meio caminho nisso. Quando dizemos, “Ah, não me importo tanto com isso”, é porque você se importa sim. Só amenizou, mas se importa. Tem que quebrar a xícara e varrer os cacos, só isso, sem sofrer pela xícara quebrada. Se formos capazes de varrer os cacos de tudo na nossa vida, daí sim, pois não são somente coisas, coisas são mais fáceis. Emoções, apegos, pessoas, são fontes de maior sofrimento e mais difíceis de lidar.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Descartando até o próprio nome


3) Eu gostaria de entender uma coisa, quando o Senhor falou em aversões,  eu gostaria de me sentir parte dessa natureza, mas por mais que eu trabalhe essas coisas em mim ainda não me sinto no chão, me sinto muito aérea. Gostaria de me sentir presente em algum lugar.

Monge Genshô – Você precisa praticar meditação para aprender a ficar presente, aqui agora, nesse lugar. Mas acredito que seja necessário sentir que tem raízes, porque somos seres móveis, mutantes e também transitamos por todos os lugares e isso nos dá muitas possibilidades e, se você fosse uma árvore e estivesse presa sem jamais poder sair, talvez você dissesse “eu queria ser livre, queria ser um pássaro e poder voar, mas eu com essas raízes que me prendem, não posso”. Nós seres humanos somos muito complicados, nunca estamos muito satisfeitos. Frequentemente tenho conversado sobre isso, porque o mundo tem variado e estávamos falando da Grécia.

No Brasil temos 22% das pessoas que estão trabalhando para o Estado, todos querem ser funcionários públicos.  Porque se tem segurança, nunca se será demitido. E falávamos que a Grécia entrou na zona do Euro e o povo sentiu-se mais rico, o governo com mais condições financeiras resolveu atender os desejos das pessoas. No fim gerou-se até um 16º salário e perto de 50% da população estava em empregos públicos, só que o governo não tinha condições de arcar com tanta despesa, foi pegando dinheiro emprestado e no final descobriu-se que a Grécia não tem como pagar os empréstimos feitos. A lição que vem disso é que não se pode fazer as coisas infinitamente, não existe a possibilidade dos gastos infinitos, da estabilidade para todos. Vivemos em um mundo instável e buscamos cada vez mais estabilidade. Mas essa não é história da humanidade. A história da humanidade é tremenda incerteza.

Até o início do século XIX fome generalizada para países inteiros era coisa comum, só paramos de ter fome em todos os lugares quando foi possível levar navios com alimentos de um lado para o outro no mundo. A história da humanidade é de incerteza, guerras e mudança. É interessante que existam países em que acontece uma certa estabilidade, como é o caso da Suíça de hoje, e isso já ocorre desde a segunda guerra mundial. Mas quando conversamos com jovens, eles dizem que o Brasil é maravilhoso, pois existem muitas possibilidades, muita aventura e muitas coisas podem acontecer. Na Suíça, eles dizem que sabem que irão fazer tal curso, trabalhar em determinada empresa. Tudo já é previsto, muito estável, e a sensação que as pessoas têm é de imensa monotonia. E nós que estamos na parte instável do mundo, onde as coisas sobem e descem, queremos estabilidade. Mas temos conhecimento de jovens que saem desses lugares estáveis para morar no Brasil e América Central em busca de aventura, de mudanças.

Uma vez conversando com um senhor alemão ele me dizia da maravilha, da sorte que eu tinha de morar num lugar onde as possibilidades eram infinitas, uma vez que na Alemanha tudo já estava feito. É interessante que as pessoas tenham esse tipo de sentimento morando em um lugar desses. O que interessa para nós do ponto de vista budista é que o ser humano nunca está satisfeito, quando tem estabilidade quer aventura, quando tem muita aventura anseia pela estabilidade. Uma pessoa me disse que quer estabilidade,  disse à ela que vou levá-la à um país chamado Andorra, que possui cinco cidades. Então ela fez uma pesquisa na internet e descobriu que o país tem menos de cinquenta mil habitantes, é um principado. Vive do turismo e tem um único imposto, 15% de tudo que for comercializado. Não existe declaração de imposto de renda, não possui exército, nada acontece, há muito que o país vive nessa calmaria. Quando estive em Andorra o que as pessoas diziam era que o lugar era monótono, “nasci na casa dos meus tataravós e morrerei nessa mesma casa, aqui é muito chato”. Todos sabem da vida de todos, pois cada cidade tem no máximo dez mil habitantes. Mais ou menos 17% da população é de imigrantes portugueses e angolanos, que fugidos da guerra civil de seu país vão em busca de paz. Para esses imigrantes, Andorra é o paraíso.

4) Tenho um dúvida sobre a disciplina do Zen. Onde se encaixaria a disciplina nesse universo que o Senhor mesmo falou de aventura e mudanças? Entraria como uma espécie de balança?

Monge Genshô – Em um mosteiro a monotonia é imensa. Tudo tem hora para começar e terminar. Vai raspar a cabeça no quarto e nono dias, não existem domingos e feriados, um dia para lavar a roupa, outro dia para cerimônias, é tudo sempre igual, sempre as mesmas coisas. O máximo que pode acontecer é trocar de função. Não existem notícias de fora do mosteiro, sem rádio ou televisão, sem telefones. Você mergulha na mais absoluta paz. Por isso quando o monge sai do mosteiro, pensa que o mundo está uma loucura. Como você viveu em um universo onde tudo é compartilhado, não existe nada de seu, você não precisa de nada, não precisa de bens, não há a absoluta necessidade de adquirir  nada.

Comentário – Mas dessa forma sempre tem alguém por trás pensando e organizando e, de certa forma, financiando tudo isso. Os seres fora do mosteiro trabalham para sustentar esse estilo de vida.

Monge Genshô – Sim, isso é verdade. E essa sempre foi a tradição da humanidade, os religiosos sempre foram sustentados. A sociedade produz um excedente e isso propicia o sustento dos monges. Embora os monges em mosteiros trabalhem, isso não é suficiente para produzir renda para ter um conforto a mais. Os monges dormiam na sala de meditação, suas refeições eram feitas ali também, ninguém possuía quarto particular. Ele só tinha um lugar onde meditar, dormir e fazer suas refeições, isso tudo no mesmo lugar, hoje em dia já há mais conforto, mas era assim mesmo. Só levantava dali para trabalhar ou fazer cerimônias.  A lição quando o monge volta para o mundo, é perceber que os problemas que angustiam e preocupam a humanidade são problemas fabricados, problemas criados por nós mesmos. Acreditando num determinado mito, por exemplo, você tem um nome e precisa defender esse nome. Em um mosteiro você descarta seu nome de família e ganha um novo nome.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dor física



2) E com relação a dor física, doenças, onde se enquadraria dor física? No sofrimento talvez?

Monge Genshô – Não, esse não é um sofrimento mental. Esse é um sofrimento que surge da condição humana, da causalidade. Mas não necessariamente você tem uma culpa para surgir um sofrimento físico, o simples fato de sermos seres humanos fará com que tenhamos doenças, dor e desconforto. Isso faz parte do nosso carma de termos nascidos seres humanos. Algumas pessoas são mais felizes nesse aspecto, mesmo crianças que têm doenças dolorosas, quando olhamos não conseguimos ver nenhuma justificativa para isso. As pessoas que crêem em Deus se revoltam com Deus, questionando -“Mas por quê Deus faz isso?”. Se você imaginar que a criança surgiu agora e que não existe nenhum passado, você não encontrará explicações. Mas se olharmos todas as vidas como longas continuidades, todos teremos carma para muito sofrimento, pois atrás de nós há muitas vidas e com certeza muitas coisas erradas foram feitas.

Mas com relação à dor física, se você desenvolver uma mente altamente disciplinada, é possível diminuí-la consideravelmente. Ignorá-la a ponto de não sentí-la. Tornar-se um com a dor é um treinamento que pode ser feito no próprio zazen. Todos sentimos dor no zazen, é o momento de pensar: a dor existe, mas não é minha, é só uma dor. Já viram aquelas imagens de monges se auto imolando em posição de zazen? Na época da guerra do Vietnã, muitos monges atearam fogo em seus corpos para derrubar o governo que estava perseguindo o budismo. Algumas pessoas perguntam, em razão desses atos, se o budismo apóia o suicídio. Nesse caso não se trata de suicídio. Trata-se de um ato de sacrifício em nome de milhares de pessoas. É diferente. Quando estiverem fazendo zazen e sentirem dores, podem imaginar que é possível queimar seu corpo em zazen sem se mexer.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Juntando os cacos


Temos então duas grandes fontes de sofrimento: apegos, principalmente afetos, meu filho está passando as férias aqui comigo, amanhã pela manhã ele irá embora, ontem eu sonhei que ele estava indo embora, então me emocionei. A outra fonte de sofrimento é a aversão, o “não gosto”. É claro que na nossa vida comum, se temos um problema difícil de resolver e você não consegue ficar junto, é melhor não conviver. Mas aí não é a vida dos mosteiros. No caso, fora dos mosteiros, o melhor é evitar os relacionamentos perturbadores. Mas com relação ainda aos apegos, não é porque sofreremos por termos apegos que deixaremos de ter amor. O que temos que fazer é admitirmos que a vida é constituída desses envolvimentos e das consequentes perdas, e aceitar que os afetos vêm e vão, que as coisas surgem e terminam.

Para quem trabalha com pessoas e ouve esses tipos de problemas o tempo todo, acaba aprendendo, pois vem uma pessoa e lhe diz - “Eu tinha um relacionamento, um amor, e agora aconteceu uma separação e estou sofrendo muito”. Sei que o sofrimento é real, mas também sei que em alguns anos ao encontrar essa mesma pessoa e ao lhe perguntar sobre o relacionamento ela dirá, “que bom que acabou, encontrei outra pessoa”. Por isso no Sutra do Coração está escrito que “aquele que atinge a iluminação livra-se de toda dor, agonia e sofrimento”. Sua dor e sofrimento desaparecem, pois sua visão de mundo mudou. É como você gostar muito desta xícara, mas ela cai no chão e quebra, o que deve ser feito? Buscar a vassoura e juntar os cacos. Não existe muita utilidade você lamentar sobre os cacos. Não tem muita utilidade essas coisas que arrastamos. Quando as coisas caem e quebram o que temos que fazer é juntar os cacos.

PERGUNTAS

1) Quais são as causas do sofrimento que o Senhor falou?

Monge Genshô – O apego, a aversão e a ignorância. A ignorância é a falta de compreensão. Conhece as pessoas que fazem escândalo porque quebra alguma coisa? Elas brigam e criam um mal estar tremendo por causa de algo que não tem conserto, esse é um dos aspectos da ignorância.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Apego e aversão


O sofrimento provém do apego, essa é a informação que a gente ouve. Por causa do apego é que nós entramos em sofrimento. Isso é bem verdade, em geral sofremos pelas coisas nas quais colocamos nosso coração, aí estará a possibilidade de nosso sofrimento. Nenhuma das coisas do mundo é permanente, sólida ou estável, tudo está sempre mudando e iremos perder as coisas que julgamos preciosas. Perderemos os amores, as pessoas, o crédito, a fortuna e a fama. As coisas surgem e desaparecem. Porque nos agarramos à elas e nelas colocamos nosso coração, então sofremos pelas perdas.

Temos muita dificuldade de nos libertarmos desse tipo de sofrimento porque sempre fomos ensinados desde pequenos a chamar as coisas de “meu” e “minha”. Primeiro aprendemos que temos um “eu”. Logo depois aprendemos o “é meu”. Como agregamos essas coisas ao nosso “eu”, quando elas partem, sofremos. Quanto mais memória você guardar disso, mais sofrimento terá. Agora mesmo estava me lembrando de quando era pequeno e minha irmã ganhou uma caixinha de música, girava-se uma manivelinha e tocava uma melodia. Eu e meu irmão ficamos muito intrigados e resolvemos desmontar a caixa para ver como funcionava. Evidentemente destruímos a caixinha de musica. Lembro que minha irmã entrou no quarto onde estávamos e viu o que fazíamos. Isso deve fazer uns 55 anos. Mas da última vez que estive com ela, ela me acusou de ter destruído sua caixinha de musica. A caixinha de musica de 55 anos atrás ainda causa sofrimento.

Hoje um aluno me escreveu porque eu havia dito a ele que não era um ser perfeito. Mas o que interessa nessa história é que, porque havia apego, houve sofrimento. Como houve intenção, isso criou um carma e esse carma ainda vive depois de tantos anos. Mas existe outro aspecto que nos causa sofrimento que normalmente é esquecido - a aversão.

Buda ensinou: “sofremos por apego, por aversão e por ignorância”. Nós sofremos também quando sentimos aversão. Aversão a pessoas, coisas, alimentos, enfim, todas as coisas. Desenvolvemos preferências e dizemos: “eu gosto disso”, “não gosto daquilo” e dessa forma criamos sofrimento.

Por causa disso, nos monastérios Zen, quando se servem os alimentos, isso também nos nossos retiros, são servidos alimentos diferentes e você não pode recusar, não pode deixar de comer nenhum deles. Eu pessoalmente nunca gostei muito de comida japonesa não sei porque resolvi ser monge de uma escola japonesa. Já estive em mosteiros onde a comida servida era tipicamente japonesa, não a comida que a gente come em restaurantes, mas a comida mais do dia-a-dia do japonês, ameixas salgadas, pudim que tem pimenta dentro, café da manhã com papa de arroz sem sal e legumes cozidos. Para um brasileiro que não está acostumado, quando se depara com esse tipo de refeição pela manhã, estranha.

O que acontece é que você tem que sentar, receber a comida e comer sem julgamentos de “eu gosto, eu não gosto”. Depois de repetir a mesma comida por dez refeições, você acaba gostando, acaba descobrindo sabores que não conhecia, mas para isso o julgamento “gosto”, “não gosto” tem que cessar. Esse treinamento é feito para superar o sentimento de aversão. Os mestres costumam fazer algumas coisas um pouco incompreensíveis, por exemplo, existe um mal estar entre dois monges, eles não se entendem muito bem. Lembro-me bem de um episódio entre duas monjas que foram reclamar ao mestre, cada uma dizendo odiar e ser odiada pela outra. Então o mestre tomou a providência de colocá-las a dormir juntas no mesmo quarto. Você deve aprender sua aversão. O ensinamento é “Sente-se com seu desconforto”. As opções são: ou você vai embora ou fica e resolve a questão.

terça-feira, 18 de março de 2014

Retiro de outono

 Para quem deseja ir, compre passagem com antecedência, inscreva-se logo para garantir vaga. No último sesshin encerramos as inscrições com lista de espera muito grande.





De 30 de abril à 04 de maio (quarta à domingo).
Casa de Retiro, Morro das Pedras. Florianópolis. SC.
Inscrições e Contato: juliana@chalegre.com.br /  ( 48 ) 9971 1323.

A JORNADA DE TARÔ - Dosho Saikawa

Já está disponível na loja do Daissen o livro de Dosho Saikawa Roshi.

(http://www.daissen.org.br/hp/index.php?id&s=loja)

A JORNADA DE TARÔ - Dosho Saikawa
Paz, tolerância, compaixão, união, sabedoria - esses são alguns dos ensinamentos do budismo, uma religião que surgiu no Nepal, há 2500 anos. A história de Tarô, um peixe curioso que parte à procura da famosa “água da vida”, que concederia a maior felicidade do mundo a quem a encontrasse, traz muitas lições ligadas a essa tradição antiga.
Viajando por diferentes mares, Tarô pergunta sobre a água da vida a todos os peixes que encontra e nunca é bem recebido. Até que um dia é erguido por uma onda e vislumbra o mar de cima. Nesse momento ele descobre que a água da vida está por toda parte, até mesmo em todos os seres que vivem ali.
Com apresentação e tradução do inglês de Heloisa Prieto, este livro também traz, ao final, uma introdução à história do budismo e aos seus fundamentos.

Pequenas decisões


1) Quando sentamos sozinhos em casa, vemos a diferença de sentar no templo, sua energia. Essa condição que o senhor falou, de não ficar sentado e transmitir o Dharma, não seria muito mais quando a gente propicia um espaço, um local, cria a condição? Temos vários grupos, o Senhor mesmo tem grupos ligados ao Senhor pelo Brasil todo.

Monge Genshô – São pequenos grupos e eles só existem porque alguém sentiu vontade de criar um espaço para que as pessoas pudessem sentar. A atuação que podemos fazer no mundo depende de nossos talentos. Cada discípulo de Buda tinha um talento diferente. Mahakashyapa era melhor em práticas ascéticas, ele prometeu jamais deitar-se, dormia sentado na posição de zazen. Shariputra ficou conhecido por sua sabedoria. Purna era o melhor pregador, um grande orador. Nós temos talentos e devemos usá-los em beneficio de todos, para que nossas vidas não sejam desperdiçadas.

Fazer votos é a maneira de nos comprometermos de usar nossos talentos de forma compassiva e para ajudar os outros seres. Nenhum de nós irá escapar de ter medo, Buda teve e, como contei para vocês, as roupas de Monge me pareceram um abismo. Penso que vocês concordam, que bom que eu pulei, foi bom, hoje eu vejo isso, a melhor coisa para minha vida. Hoje vejo que meu tempo de vida é curto para tudo que gostaria de realizar. Então, preciso que outros saibam usar o manto e seus próprios talentos para que isso possa continuar. Quando realizei minha primeira palestra em 2002 em Florianópolis, não havia nenhum praticante do Zen em todo o Estado de Santa Catarina. Hoje temos ao nosso lado nesse sesshin, Fukuda San, ele é descendente de uma longa tradição, o pai dele era Monge, ele nasceu em um templo, mas para estar nessa condição, outros abriram caminho antes dele. Ele pôde ir para uma Universidade, existe uma enorme estrutura, mas como começou? Começou com Dogen, oitocentos anos atrás. Vocês assistiram o filme, Dogen foi à China, voltou, sofreu perseguições, teve seu templo incendiado e morreu com cinquenta e três anos. Mas por causa de Dogen estamos aqui hoje. Dogen só foi à China porque Bodhidharma foi da Índia para a China ensinar o Budismo no ano 600 d.C.. Bodhidharma só foi para China porque Buda se levantou e costurou seu manto. Qualquer um deles poderia ter interrompido essa história e nenhum de vocês estaria sentado aqui hoje. É delicada a história, uma pequena decisão poderia mudar tudo.

2) Escutando essa história de sua decisão, a história de Fukuda San, a história de Dogen e, o nosso Roshi seria um Dogen de nossos dias, ele estaria resgatando o Zen? Porque a maneira dele ensinar, é focado na iluminação.

Monge Genshô – Somos muito privilegiados e muitas vezes não percebemos o tamanho do privilégio, da sorte que temos. Nosso sesshin está no final, temos então, um grande desafio, não desperdiçar esse estado mental que com grande sacrifício construímos. Já que construímos algo no sesshin, não deixar de praticar é um grande desafio. Todos podem sentir que tem algo para ser encontrado, criado, dentro de nossas mentes. A vida é difícil, ser disciplinado não é fácil, praticar não é fácil, trabalhar não é fácil, esquecer-se de si mesmo, jogar fora seu orgulho e vaidade, não é fácil, não deixar que pensamentos negativos nos governem, o medo, a raiva, paixões, ambições pequenas, não deixar que isso tudo nos governe. Temos que ser superiores a esses sentimentos se quisermos estar mais perto de Buda. Reverenciamos Buda como um modelo, um grande mestre, ele mostrou que era possível, por isso tantos o seguiram. Somos maus alunos. Frequentemente vejo minhas falhas, mas pelo menos estamos tentando e isso que é ser praticante.

segunda-feira, 17 de março de 2014

A escolha de uma vida


(continuação)Às vezes alguém vem e me diz que sua vida mudou, o sofrimento diminuiu, está enxergando a vida com mais clareza, e essa pessoa me agradece. Nesse momento eu sinto que minha vida tem significado. Acredito que foi isso que Buda sentiu, sua vida teve significado, mudou a história de países inteiros durante milhares de anos, mudou muitas e muitas vidas. Nós podemos escolher ter vidas medíocres, podemos escolher ter vidas simples, fazer pouco e não se comprometer muito. Quando fazemos votos em uma instituição e costuramos nosso Rakusu, nós criamos a instituição, pois ela não é sagrada, as roupas não são sagradas, os votos não são sagrados, somos nós que os transformamos em sagrados.

A estátua de Buda é de gesso, nós que colocamos flores, oferecemos incenso, acendemos velas, fazemos reverências e transformamos essas idéias em algo maravilhoso, caso contrário, isso não representaria nada. Um manto só é um manto porque o colocamos em lugares elevados, o tratamos com cuidado e olhamos para ele com reverência. Isso é um método, tudo que estamos falando, os ensinamentos, os compromissos, os votos, fazemos para nós mesmos, para mudar a nós mesmos e talvez mudarmos o mundo. Por isso fazemos. Com nossas reverências, transformamos Buda em Buda, somos nós que fazemos esse mundo diferente.

Qual o sentido das cerimônias, das prostrações e dos rituais que fazemos? É um método para criar entre nós uma energia que muda tudo. Acredito que ninguém passa por um sesshin sem ter algum efeito, primeiro porque ele vem procurando algo, segundo porque o sesshin está cheio de regras e rituais detalhadamente elaborados para criar atenção, para limpar a mente, nos mostrar a fotografia de quem realmente somos e talvez nos mostrar nossa covardia. Por que se Buda tivesse dito - “Não, é muito trabalho”, e tivesse ficado em qualquer lugar, talvez perto de seu palácio, perto de sua família, reivindicasse sua herança, afinal de contas seu pai era muito rico, se tivesse feito isso, teria tido uma vida confortável, não teria enfrentado problemas e até rebeliões dentro de sua Sangha e até mesmo tentativas de assassinato, teria sido somente mais um covarde medíocre na história da Índia.

Estamos aqui porque ele não fez isso. Cada um de nós pode fazer uma escolha. “Que tipo de vida eu posso ter? Sigo o fluxo normal, ou tento me mudar e mudar outras vidas, para que o mundo seja mais parecido com aquilo com que idealizo”? Essa foi a lição de Buda, ele foi um Bodhisattva, porque ele se levantou e foi ensinar. Caso contrário, ele seria só um iluminado. Ao se levantar ele manifestou sua compaixão. Por isso quando costuramos nosso Rakusu fazemos os Votos do Bodhisatva.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Entrega à prática


Desde os tempos de Buda aconteceu uma espécie de entrega à prática. Quando Buda obteve a iluminação embaixo da árvore Bodhi, ele foi até a beira do rio e como não tinha roupas, pegou retalhos de mortalhas, tecidos rejeitados, recortou os pedaços que ainda eram aproveitáveis, lavou-os, tingiu-os, algumas histórias dizem que com açafrão, outras dizem que com argila, de modo que temos as cores dos mantos variando entre marrom e amarelo, e costurou-os fazendo desta forma seu manto. Por isso o manto dos monges é feito até hoje de retalhos.

Neste momento Buda sofreu uma grande dúvida e, a história mítica conta como se ele fora tentado a ficar com sua descoberta para si mesmo, não ensinar ninguém e não transmitir a ninguém o que ele havia descoberto, porque as pessoas não iriam aceitar, algumas pessoas provavelmente iriam rir dele e isso seria inútil e sem sentido. A história lendária diz que o próprio Deus Brahma, Deus do Hinduísmo, desceu dos céus e lhe implorou que ensinasse as pessoas. Esse mito tem a ver com um sentimento comum entre nós, todas as vezes que ficamos à beira de uma grande coisa, temos dúvidas e essas dúvidas trazem junto consigo nosso passado, as nossas piores partes, nossa preguiça, nosso medo, assim como aconteceu com Buda, o medo de sermos imperfeitos, o medo das responsabilidades.

A primeira vez que vesti meu manto foi em 2001 e pedi ao meu primeiro professor, eu lhe disse que me sentia insatisfeito e perdido com a vida de executivo, trabalhava demais e viajava muito, mais de duzentas viagens de avião por ano, estava muito cansado daquela vida e pensei que seria uma saída me tornar Monge, então pedi a ele. Então ele riu de mim e disse: “Você quer se tornar Monge porque viaja demais, está cansado, tem que correr atrás de dinheiro. Mas acontece que como um Monge eu faço as mesmas coisas, então, você não precisa se tornar Monge”.

Uma vez um amigo que viajava comigo em consultorias me ouviu falar sobre o Zen e me pediu que o ensinasse a fazer meditação. Na mesma noite ele bateu à minha porta no quarto do hotel, me pediu para ensiná-lo e já trazia um cobertor enrolado embaixo do braço. Organizamos depois disso uma Sangha em Porto Alegre. Após um ano mais ou menos, eu fui ao Rio de Janeiro e disse ao meu Mestre: “temos um grupo, estamos sentando sempre, tenho meu Rakusu, será que não seria melhor eu me tornar Monge?” Ele riu de mim - “peça de novo ano que vem”. Então continuamos praticando, construímos em um estacionamento um Zendo, mas passávamos muito calor, pois o teto não tinha isolamento, havia sido feito para carros, mas aprendemos que dá para sentar com o suor pingando.  No fim desse ano ele me ligou e perguntou se meu grupo ainda existia e disse que faria uma visita. Me lembro bem que depois de ver vinte pessoas sentando para praticar, ele sentou-se em um toco de árvore na beira da calçada e ficou olhando o céu e dias depois me disse, “costure suas roupas de monge”.

Então, peguei o endereço do um pai de uma Monja que costurava roupas. Mandei então minhas medidas e ele costurou. Quando chegou a roupa eu coloquei em cima da cama e senti uma sensação horrível. A sensação era de estar à beira de um abismo – “onde estou me metendo, o que irá acontecer”? Minha vida toda irá mudar por causa disso. Mas eu não podia mais retornar, já havia feito a escolha. Eu sentia o medo e o risco de ver aquelas roupas e só posso supor que Buda também tenha pensado assim logo após sua iluminação - “Se costurar um manto e sair para ensinar, toda minha vida mudará”. Embora façamos nossos votos para nós, esses são para nós mesmos, não para os outros, não são para mostrar ou exibir. Muito leigos na nossa Sangha já costuraram seus Rakusus, cujo único significado é, fiz meus votos, costurei minha miniatura do manto de Buda e recebi um nome. Mas qualquer um pode pegar seu Rakusu e queimar, pode não vir mais à Sangha, não participar mais de retiros, pode fazer o que quiser, pois os votos são seus. O Monge também pode tirar o manto e dizer: “não sou mais monge”. Ninguém dirá nada, não existe nenhum tipo de protesto ou castigo, uma excomunhão ou coisas desse tipo. Buda não pôde evitar, fez seu manto, encontrou seus companheiros e não conseguiu evitar fazer seu primeiro sermão sobre “As Quatro Nobres Verdades”. Deste dia em diante, ele ensinou por quarenta anos e milhares de pessoas o seguiram.

Quando ainda jovem, professores mais velhos com centenas de alunos o ouviam e lhe pediam para serem seus discípulos. Foi o que aconteceu com Shariputra, que já era um Mestre conhecido. Então, qual o sentido de fazer votos e colocar um Rakusu? O sentido é prometer coisas do tipo: “prometo não matar, não roubar, não enganar, não usar substâncias que alterem a consciência, não usar sua sexualidade sem respeito e responsabilidade, não me elevar rebaixando os outros, fazer o bem, evitar o mal”, tudo o que, na realidade, as pessoas gostariam de prometer e, se prometessem e cumprissem, o mundo seria maravilhoso, seria um mundo perfeito, ou quase.

Então eu me pergunto: por quê, naquele momento, quando olhei as roupas, eu pensei que fosse um abismo? Mas não foi um abismo, foi uma bênção. Se eu olhasse para a minha vida e tirasse o budismo, o que eu seria? Estaria trabalhando somente para ganhar dinheiro, comeria, dormiria, acordaria, tudo isso todos os dias, até o dia de minha morte e sem ter feito nada de significativo. O que eu faço de melhor, é isso, é isso que dá sentido à minha vida.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Escute aqui seu idiota!





5)  O senhor começou sua palestra falando sobre aproveitar sua vida, seja feliz pelo momento e fiquei pensando, não tem como não sofrer, até o mestre iluminado se a mãe dele morrer ele irá chorar. Então seria assim, eu aproveito minha vida, não significa deixar de viver para não sofrer, então vou aproveitar o máximo minha vida, vou amar, mas eu sei que o sofrimento vem junto. Na verdade amar e sofrer seriam duas coisas iguais?

Monge Genshô – Sim, é verdade, estão dentro uma da outra. E aproveite sua vida já que você tem uma vida. Quando tiver sofrimento, sofra. Morre sua mãe, o que você faz? Chora, não há mais nada para ser feito.

Aluno - Mas se compreender, não chora. Compreende e não chora.  Porque teremos a compreensão de que a vida é assim, cresce, adoece e morre.  É da natureza.

Monge Genshô - Não é assim, compreende e chora assim mesmo. Nós poderíamos dizer – “Ah, meu filho morreu, é como uma folha que caiu” – mas isso não é realista. Na verdade você sofre e sofre mesmo, entregue-se ao sofrimento e sofra de verdade, porque faz parte da vida.

Aluno - Me veio à mente a imagem do filme de Dogen, que quando ele morre todos os monges caem em pranto. Naquele momento eles choram compulsivamente,  sofrem e muitos já estariam até iluminados, já teriam uma compreensão, já sabiam que ele iria morrer e mesmo assim sofreram.


Monge Genshô -  A melhor história para isso, talvez, seja a do mestre que recebe uma carta com o comunicado de uma morte na família. Ele senta-se numa pedra e começa a chorar. Um discípulo vai até ele e faz esse discurso – “Mas como o Senhor nos ensinou sobre apego e agora o recebe uma carta sobre a morte de alguém da família e está aí chorando”? -  o Mestre dobra a carta olha para ele diz – “Escute aqui seu idiota! Estou chorando porque quero” – vira-se para o outro lado e volta a chorar.  Esse é o Zen.

quarta-feira, 12 de março de 2014

A nossa chance é o caminho


Por favor, sentem-se em zazen, não se levem muito a sério, tentem se livrar de vocês mesmos, essa é a nossa chance. Sesshin é uma grande oportunidade de ter uma experiência mais profunda. Por isso fazemos um zazen atrás do outro. Não desperdicem o zazen. Essa aventura de despertar é a aventura principal. Só ela pode nos livrar dessa prisão de eternos retornos, de manifestações humanas sempre começando. Não estou preparado para ser um Buda e não estarei provavelmente, de forma que sei que vou voltar. Tento ser um bom pai para meu filho  e digo assim: “quando eu for renascer quero renascer como teu filho, então preste atenção, me trate bem”, porque fico imaginando, a gente vive e morre e depois sem memória nenhuma do que aconteceu no passado, só guardando nossos impulsos, e meus impulsos não são lá essas coisas, tenho maus impulsos, então, de repente, só carregando isso, me ver de novo como um bebê, tomando mamadeira sem nenhum guia, só meus impulsos. Então temos que trabalhar nossos impulsos, nossa maneira de ser, nosso caráter, porque nós só conservamos isso. O carma só leva impulsos, não leva o “eu”.

De forma que, pela tradição, nos manifestamos de novo carregando impulsos, por isso cada pessoa que nasce é diferente, pois carrega suas marcas cármicas, só temos elas e mais nada. Não dá para dizer, “eu sei que isso não dá certo e vou tentar evitar”. A gente tem os mesmos impulsos. E aqueles que têm egos, apegos e desejos, por causa disso, sofrem. Nós sofremos, nós desejamos coisas. Desejamos segurança, filhos, amores, uma boa família e quando as coisas não funcionam como desejaríamos, nós sofremos. Essa é a raiz do sofrimento, aquilo que desejamos e esperamos. Se não tivéssemos nenhum desejo ou esperança não existiria nenhuma expectativa para ser frustrada.  Nós sofremos por expectativas frustradas.

4) E quem gosta de sofrer? Entendo que a gente goste de sofrer por isso estamos aqui, pelos impulsos de sofrimento e de coisas boas, não só coisas ruins, existem as coisas boas também...

Monge Genshô -  Eu penso que a resposta esteja dentro da pergunta - nós gostamos de sofrer - por isso estamos aqui. Vêm coisas boas e ruins juntas, nós queremos amores, mas nos metemos neles e sabemos que eles terminam. Junto com a aquisição do amor vem o sofrimento da perda. Qualquer coisa que nós guardemos. Eu sempre gostei muito de livros, mas os livros velhos que tenho estão se desfazendo. As folhas vão ficando amarelas, existe uma acidez no papel que o vai destruindo. Para conservar seria necessário um ambiente climatizado, uma bibliotecária cuidando. Esses dias vi um livro com uma dedicatória escrita por meu pai, há cinqüenta e tantos anos, quando eu tinha dez anos, se desfazendo e a escrita vai se desfazendo junto com o papel, e me vem a sensação de que as coisas que a gente dá valor se desfazem. Junto com o presente, vem a deterioração do presente.

Então, junto com todo o prazer, junto com todas as coisas boas, vem as perdas e o sofrimento. Estão inextricavelmente ligados. A vida não é só sofrimento. A vida é alegria, prazer e sofrimento. Uma bela garrafa de bebida e amigos dando risada, no outro dia, ressaca, dor de cabeça, vem tudo junto, não tem como escapar. A gente não consegue separar uma coisa da outra. Um filho nasce, você o ama, um dia ele vai embora e você fica sozinho. Um dia ele casa com uma nora que você não gosta e a nora não quer que ele venha na sua casa. Com o filho vem junto a nora. Está tudo conectado. Junto com a saúde vem a doença. Tem um corpo forte, um atleta. Noutro dia velhice, juntas que não funcionam, artrite, decadência física.

terça-feira, 11 de março de 2014

O tempo de viver é só o tempo de viver


2)  Nesse caso entra a filosofia, o pensamento, a mente e o “eu”. Então como fica a questão de como quebrar o “eu” e ao mesmo pensar filosoficamente, sendo que a filosofia tem o “eu” dentro?

Monge Genshô - Primeiro há raciocínios, é o que chamamos de “ensinamento provisório”. Primeiro raciocinamos. Basta observar para ver que você nem precisa morrer para perder seu “eu”, basta ficar doente, perder a memória, por exemplo, e não saber mais quem é, como tantas vezes já foi explicado. Mas depois, é a solução final de Buda, que não é uma solução baseada no raciocínio, mas em uma experiência mística. Ele senta para meditar e enxerga. Então, na prática, o que o budismo diz é que aquilo que Buda fez - sentar-se para meditar e perceber com clareza a verdade e dizer para o seu “eu” - “você não me enganará mais” - essa experiência é acessível por todos, todos têm a condição de Buda, todos somos Budas, só precisamos fazer a mesma coisa, sentar, meditar e acordar. Quando acordarem, subitamente grande felicidade e todos os problemas da vida parecerão bobagem, podem se evaporar como fumaça. Inclusive o grande problema da morte.

Para aquele que enxergou a unidade, a morte não existe. Posso falar isso para vocês: o medo da morte desaparece como mágica. Não tem mais importância. Por isso aquela história de um general que invade uma cidade, chega à um templo Budista, encontra um mestre e fica indignado porque o mestre não tem medo e com sua espada suja de sangue lhe diz – “Você não vê que posso lhe matar em um instante”? – e o mestre lhe diz – “E você não vê que eu posso morrer em um instante”? Existem tantas histórias de mestres budistas que simplesmente morrem – “Eu chamei vocês aqui hoje porque irei morrer” – então senta em zazen e morre.

Esse mestre tibetano que morreu no Brasil, Chagdud Rinpoche a quem visitei várias vêzes, fez suas coisas de forma interessante também. Ele estava doente, isso foi há alguns anos, há uns dez anos. Ele chamou os alunos e disse: “Eu vou dar um curso sobre como morrer”. Foram então umas duzentas pessoas fazer o curso com ele. O curso estava marcado para terminar às 18:00 hs, mas ele continuou ensinando e falando sem parar até as 22:00 hs, então levantou-se e disse – “Bem, agora eu vou embora”. Foi para seu quarto, sentou em zazen e morreu. O corpo dele continuou sentado em zazen e os tibetanos acham que não se pode mexer em um mestre que morreu assim enquanto o corpo não cair. E quando veio a Secretaria da Saúde, eles tiveram que convencer os médicos que apesar dele estar morto, o corpo não poderia ser tocado, era um sinal de respeito. Os médicos compreenderam e ficaram todos esperando. Após seis dias o corpo empalideceu e caiu. Foi então retirado para cremação.

No Zen as histórias são a vezes anedóticas Vocês viram o filme sobre o Zen onde acontece a morte de Eihei Dogen. Tem uma história muito interessante sobre um mestre que era muito brincalhão, chamou seus discípulos e perguntou-lhes – “Vocês já viram alguém morrer deitado”? – e todos responderam que sim, e – “Já viram alguém morrer sentado”? – E a resposta foi a mesma, e – “Mas e de cabeça para baixo”? – e os monges responderam que nunca haviam visto alguém morrer nesta posição. Então ele fez uma postura de ioga de cabeça para baixo e morreu. E o corpo dele não caía, então como os discípulos não queriam mexer no corpo mandaram chamar uma irmã dele. Quando ela entrou disse – “Você a vida inteira fazendo palhaçada e agora ainda morre de cabeça para baixo, saia logo dessa posição” – só então ele caiu e puderam enterrá-lo.

Essas histórias têm algo de mítico evidentemente, mas elas têm uma intenção ao serem contadas. É que nós levamos tudo muito a sério, e parece na realidade, que no Zen nunca se levou muito a sério essa questão. Como dizia Dogen – “O tempo de viver é só o tempo de viver, o tempo de morrer é só o tempo de morrer”.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Quem sou se tirar o "eu" ?


Aluno - Porquê?

Monge Genshô -  Porque o “eu” é muito nítido, muito forte, você abre os olhos e vê os outros. Você tem ouvidos e ouve sons. E você pensa “Ah, isso sou eu!” Isso não é você, isso são sons, é a visão, são os cheiros. Porque você pensa que é o que ouve, o que vê, o que cheira, o que prova. Nós pensamos que nossa mente somos nós mesmos, essa conformação mental é nossa consciência, esse que pensa como Descartes “Penso, logo existo”. Eu penso, logo eu existo. Não é isso. Eu penso, só penso. Esse pensar não fez um “eu”. Assim como a chuva que cai não faz nada, não faz um “eu”. Nós pensamos, só pensamos. Esse pensar nos atrapalha, cria a ilusão de um “eu”. Por isso sentamos e tentamos fazer com que nossa mente se acalme. Porque quanto mais ela cogita, mais ela se agarra à sua identidade e tem medo que sua identidade desapareça. Tem tanto medo que a identidade desapareça que cria fantasias religiosas. “Eu vou continuar para sempre, eu tenho uma alma eterna. Quem morre não sou eu, é só o corpo, eu continuo depois.” Vemos isso nos desenhos animados. Tom, o gato, morre e a alma dele vai saindo do corpo e ele consegue agarrá-la pelo rabo e a puxa de volta. Nós criamos essas fantasias mas não existe uma alma eterna. Nós somos o movimento da vida. Nós somos eternidade. Nós temos continuidade sim, há continuidade, não há com ir embora. A morte é uma ilusão.

Pergunta - Então porque a vida inventou o pensamento?

Monge Gensho – A vida não inventou o pensamento. O pensamento é só uma função da vida. Porque as plantas fazem fotossíntese? É uma função das plantas fazerem fotossíntese. Porque nós temos sentido, os nossos sentidos nos dão informações, eu toco e percebo, esse contato produz uma sensação, essa sensação viaja pelos meus nervos até meu cérebro e assim eu tenho uma percepção – “Ah, o braço da cadeira” – essa percepção junto com outras percepções faz as formações mentais, porque eu tenho percepções mentais eu crio uma consciência que diz – “Eu sinto o braço da cadeira” – preciso do “eu” para sentir o braço da cadeira, não é que o “eu” seja uma coisa inútil, precisamos dele para viver, caso contrário não posso falar, me movimentar, fazer as coisas. Só que confundo o “eu” com minha verdadeira natureza. Minha verdadeira natureza não é o “eu”. Minha verdadeira natureza é a unidade de toda a vida. A minha verdadeira natureza não é contato, percepção, sensação, formação mental consciência. O “eu” é construído com esses sentidos, agora, se eu tirar isso, o que resta? É por isso que os homens inventaram as religiões, porque eles ficam apavorados com essa sensação, “meu eu irá desaparecer, eu sou o meu eu”! “Quem eu sou se tirar o eu”? Então surge a angústia, a angústia da morte, porque todos percebem que os corpos se desfazem, a gente morre, e a gente quer que o “eu” continue.

Por isso criamos as histórias de paraísos, reencarnações, almas eternas. Nós queremos uma solução para todas as coisas da vida. Então as religiões mais bem sucedidas são as que apresentam uma solução mais bem acabada, mais fácil. Imaginem, a religião mais popular no nosso meio que é o cristianismo, nos trouxe um conceito que no evangelho Cristo não ensina, mas que é criado depois por seus sucessores, principalmente Paulo - a idéia de um Deus que veio à terra, que é um salvador e que carrega os pecados do mundo. Isso resolve todo problema cármico, porque eu não pago mais pelos meus pecados, há um salvador que paga para mim.  Se eu fiz algo errado se eu matei, mas me arrependo, vem um salvador paga pelos meus pecados e eu não preciso pagar as conseqüências, então eu retiro o carma, pois tem um salvador para pagar por mim.

Isso retirou dos homens a culpa, porque o pecado tem perdão, tem um salvador, tem um redentor. Vejam que isso é uma solução muito bem sucedida, pois com isso, você está liberto de todas as consequências, de todos os seus pecados, vai para o paraíso ser feliz para sempre, para toda a eternidade. Nunca mais nenhuma morte, para sempre, pela eternidade sem fim sempre com um eu, minha alma pessoal junto da divindade. É a solução, tudo resolvido.

Uma solução dessa tornou-se muito popular e é muito mais sucedida que as religiões que a antecederam, que não tinham soluções assim. Haviam os deuses do império romano ou grego, que eram seres humanos que maltratavam homens e as pessoas ficavam submetidas aos desejos desses deuses que eram não racionais ou não bondosos, você era joguete dos deuses, era uma solução falha. E o cristianismo tem todo o mérito de viver com uma solução assim que tudo resolve. Mas o budismo não tem essas soluções. A idéia do Zen budismo é: vou tirar todos os tapetes e bengalas nos quais você se apóia. Não há nenhum salvador e não há perdão, o que você fez tem conseqüências e essas conseqüências são inescapáveis, não há ninguém lá fora para socorrer você.

O budismo diz que você está enganado quando pensa que você é um “eu”. Você é muito mais que isso, se você sair desse enredamento, você se liberta. O dedo do budismo aponta para liberdade, para o despertar. Mas ele exige grande esforço, nada virá de graça, através de uma concessão divina ou intervenção de alguém, então você tem que trabalhar para se libertar. É o que a gente faz no sesshin. Não existe um caminho fácil no budismo, todo ele tem esforço. E não existe nenhuma promessa de fé ou qualquer coisa assim, não existe mágica no budismo.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Não é um eu que está vivendo


1)  Esse abandono do eu e do ego e a vontade da vida, isso fica um pouco confuso...

Monge Genshô - É porque pensamos que o “eu” é que vive. Mas não é o “eu” que vive a vida. A vida é que nos vive. Nós somos a própria vida. Não é um “eu” que está vivendo a vida.  Não é uma folha numa árvore lá fora que está vivendo a floresta, é a floresta que produz folhas. Nós somos a própria floresta, não somos folhas. As folhas nascem e morrem. Seria muito tolo que uma folha se sentisse muito infeliz porque amarelece e cai, nós diríamos que a folha é tola, pois torna-se húmus, nasce de novo, ela é a própria vida, não há nenhuma tristeza nas folhas que caem das árvores.

Ninguém chora as folhas que caem no outono, pois nós sabemos que a vida produz primavera, mas quando olhamos para nós mesmos, confundimos o “eu” com a vida, nós pensamos que é o “eu” que vive a vida, e não é isso. A vida é que nos vive. Somos a própria vida. E por isso, porque a vida está sempre continuando, nascimento e morte também são ilusões. Não há como você ir embora daqui, você é a vida. Então esse seu “eu” temporário é só um evento extemporâneo da vida como um todo.
É como o quebrar da ondas do mar, como as folhas que caem e viram húmus, é como as nuvens que chovem. Se uma nuvem vira água e chove ninguém diz – “Coitadinha da nuvem, virou chuva” - nós sabemos que a chuva cai, que as plantas crescem por causa disso, que nós vivemos por causa disso, um dia evapora e volta a ser nuvem. Não damos nomes às nuvens e dizemos que elas têm identidades e não dizemos – “Lá vai a nuvem Joana, coitada, vai morrer hoje pois esfriou e ela vai chover até se acabar” – só fazemos isso conosco e isso mostra nossa cegueira.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Iluminação é despertar de um sonho


Kodo Sawaki Roshi disse que “o pior vício do ser humano é o desejo de fama”. Poder, coisas que nem são materiais, mas pelas quais os homens estão dispostos a fazer tudo. Para conservar o poder ditadores podem jogar fora o dinheiro que acumularam ou roubaram de seus povos, matar pessoas, mandar bombardear, fazer qualquer coisa. Esse desejo de poder e fama é um desejo terrível. Às vezes nos perdemos com desejos de coisas e ficamos infelizes atrás de uma casa nova, um carro qualquer coisa. Esse “estar perdido” é frequente quando olhamos as crianças pequenas que ainda não aprenderam a esperar, se você disser – Não, agora não, chocolate agora não, depois do almoço, daqui a vinte minutos, depois que você comer, eu lhe dou essa barra de chocolate – então eles começam a chorar desesperados, muito infelizes pois eles querem o chocolate agora, não conseguem esperar um instante. Isso é uma falta de clareza da percepção de como o tempo transcorre.

Mas nós adultos também nos perdemos, não vemos a vida com clareza porque não percebemos que a morte ilumina a vida. Se nós colocássemos as coisas numa perspectiva de que vou morrer em uma semana – O que é relevante agora, o que eu realmente faria, o que seria importante? – Aí as coisas ganhariam um significado diferente. Nós vemos que pessoas que passam por experiências mais radicais de vida, ou o anúncio de uma doença grave, podem passar a ver a vida com mais clareza depois, porque ela se esvazia das coisas minúsculas, das coisas que não tinham importância. Quando as pessoas estão no leito de morte perdoam todo mundo, é freqüente estar lá e não ter mais importância a briga que eu tive com meu irmão por causa de um terreno ou de uma herança, não tem mais importância, porque o que eu quero morrendo, é me reconciliar com meu irmão. É comum ouvir um médico dizer que ele vê no leito de morte as pessoas se importarem com isso, com as reconciliações e não mais com as coisas, porque eles não levarão as coisas, é claro que haverão aqueles que estão morrendo e pensarão que vão levar e ficam desesperados de como fazer para levar as suas coisas.

Li um conto uma vez de um homem que era muito rico e pediu para ser jogado no mar, então ele mesmo preparou seu caixão. Ninguém sabia o que ele havia feito da sua fortuna. E no conto eles decifram o que ele fez. Pegou todo seu dinheiro e comprou e platina, que é mais caro que ouro, e fez seu caixão de platina. Sem que ninguém soubesse do que era feito o caixão ele foi jogado ao mar com todo seu dinheiro. Isso pode acontecer. Mas isso conduz a um renascimento com o mesmo tipo de angústia, mas sem a platina. Vai ter que acumular e procurar de novo e pode repetir isso mil vidas sem nunca se libertar. Então o que é acordar? O que é iluminação? A iluminação é despertar de um sonho. Nós estamos mergulhados em um sonho, o sonho de nossa identidade. Eu acho que sou eu, eu estou me importando com as coisas do “eu” aqui e agora. Não estou enxergando a unidade de todas as coisas, a interconexão, o fato de que todas as coisas e eu somos um e, como não enxergo isso, então estou sonhando e esse sonho do “eu” que tanto amamos, da nossa identidade pessoal, é nossa perdição. Por isso que quando Buda se ilumina ele diz para o vulto dele mesmo “tu não me enganas mais!” porque quem nos engana somos nós.

quarta-feira, 5 de março de 2014

“Quando sinto fome, como, quando sinto sono, durmo”


Existe um dialogo bem famoso, perguntaram à um mestre – “Mestre como é a iluminação”? -  e ele respondeu -  “Quando sinto fome, como, quando sinto sono, durmo” – e o discípulo disse -  “Mas isso é o que todo mundo faz” -  e ele disse – “Não, não é. As pessoas sentam para comer pensando em outra coisa, em suas perdas passadas, se terão comida amanhã, ganhos futuros, dificuldades, ou até na unha encravada que dói e não aproveitam, não comem realmente. As pessoas que vão dormir, deitam e pensam em qualquer coisa e não dormem bem, demoram para dormir porque estão ansiosas, preocupadas, realmente não dormem. Eu quando sinto fome, como. Quando sinto sono, durmo”.

Podemos estender isso para qualquer atividade da vida. Para tomar banho, fazer amor, pegar uma criança no colo, abraçar um amigo. Se você estiver completamente dentro daquilo que você está fazendo, você está vivendo de verdade, está vivo, os outros não estão vivos realmente, não estão acordados, estão dormindo um sonho qualquer de depressão, de ansiedade, angústia ou de tristeza e até o desejo de que a vida fosse diferente do que é nesse momento. Mas essa é a vida que você tem e esse momento é tudo. Nós nos perdemos nos sonhos do ego, a todas as coisas que estão anexadas ao nosso “eu”, nossos impulsos e desejos, nosso carma que nos trouxe para cá. Nossos desejos de reconhecimento, nossos desejos de cargos, desejos de gloria e fama.