terça-feira, 8 de outubro de 2013

O tempo de viver e o tempo de morrer


Pergunta - O budismo não deixa de ser também uma das religiões que buscam uma resposta para a morte, porque se alguma forma que seja, mesmo que sem as bengalas, ele busca uma resposta. O que seria não buscar resposta nenhuma?

Monge Genshô - Quando Buda sai na sua busca, ele sai na mesma angústia de todos. Por que nascemos, envelhecemos, adoecemos e morremos? Porque me sinto angustiado com isso? Ele quer a solução desse problema. Só que em vez de colocar a solução numa crença ele põe tudo em termos de raciocínio e treinamento. Então o budismo é treinamento da mente, libertação do homem e recusa as soluções fáceis, as crenças. E toda essa questão do eu é puramente lógica.

Pergunta - Nesse caso entra a filosofia e o pensamento e entra a mente e o eu. Então fica a questão de como quebrar o eu e ao mesmo tempo pensar filosoficamente, sendo que a filosofia tem o eu dentro...

Monge Genshô - Primeiro há raciocínios, é ensinamento provisório que se chama. Primeiro raciocinamos. Basta observar para ver que você nem precisa morrer para perder seu eu, basta ficar doente, perder a memória, por exemplo, e não saber mais quem é, como tantas vezes já foi explicado. A solução final de Buda não é baseada no raciocínio, mas em uma experiência mística. Então ele senta para meditar e enxerga. Na prática o que o budismo diz é que aquilo que Buda fez, sentar-se para meditar e perceber com clareza a verdade e dizer para o eu “você não me enganará mais”, essa experiência é acessível por todos, só precisam fazer a mesma coisa, sentar, meditar e acordar. Quando acordam, então subitamente, grande felicidade e todos os problemas da vida parecem bobagem, podem se evaporar como fumaça. Inclusive o grande problema, a morte. Para aquele que enxergou, a morte não existe. O medo da morte desaparece por mágica. Não tem mais importância. Por isso aquela história de um general que invade uma cidade, chega à um templo budista, encontra um mestre e fica indignado porque o mestre não tem medo e com sua espada suja de sangue lhe diz – Você não vê que posso lhe matar em um instante? – e o mestre lhe diz – E você não vê que eu posso morrer em um instante?

 Existem tantas histórias de mestres budistas que simplesmente morrem com simplicidade – Eu chamei vocês aqui hoje porque irei morrer – então senta em zazen e morre. Esse mestre tibetano que morreu no RGS, Chagdud Rinpoche, fez de forma interessante também. Ele estava doente, isso foi há alguns anos. Ele chamou os alunos e disse - Eu vou dar um curso sobre como morrer – foram então umas duzentas pessoas ter o curso com ele. O curso estava marcado para terminar as 18:00h, mas ele continuou ensinando e falando sem parar até as 22:00h, então levantou-se e disse – Bem, agora eu vou embora. Foi para seu quarto, sentou em zazen e morreu. O corpo dele continuou sentado em zazen e os tibetanos acham que não se pode mexer em um mestre que morreu assim enquanto o corpo não cair. E quando veio a secretaria da saúde brasileira eles tiveram que convencer os médicos que apesar de ele estar morto, o corpo não poderia ser tocado, era um sinal de respeito. Os médicos compreenderam e ficaram esperando. Após seis dias o corpo empalideceu e caiu. Foi então retirado para cremação.

 Há uma história Ch’an muito interessante sobre um mestre que era muito brincalhão, chamou seus discípulos e perguntou-lhes – Vocês já viram alguém morrer deitado? – e todos responderam que sim, e – Já viram alguém morrer sentado? – E a resposta foi a mesma, - Mas e de cabeça para baixo? – e os monges responderam que nunca haviam visto alguém morrer nesta posição. Então ele fez uma postura de ioga de cabeça para baixo e morreu. E o corpo dele não caia, então como os discípulos não queriam mexer no corpo mandaram chamar uma irmã dele. Quando ela entrou no quarto disse – Você a vida inteira fazendo palhaçada e agora ainda morre de cabeça para baixo, saia logo dessa posição! – só então ele caiu e puderam enterrá-lo. Essas histórias tem algo de mítico evidentemente, mas elas tem uma intenção ao serem contadas. É que nós levamos tudo muito a sério, e parece na realidade, que no zen, nunca se levou muito a sério essa questão. Como dizia Dogen – O tempo de viver é só o tempo de viver, o tempo de morrer é só o tempo de morrer.

Por favor, sentem-se em zazen, não se levem muito a sério, tentem se livrar de vocês mesmos, é nossa chance. Sesshin é uma grande oportunidade de ter uma experiência mais profunda. Por isso fazemos um zazen atrás do outro. Não desperdicem o zazen. Essa aventura de despertar é a aventura principal. Só ela pode nos livrar dessa prisão de eternos retornos, de manifestações humanas. Sempre começando. As vezes fico imaginando, não estou preparado para ser um Buda e penso que não estarei, de forma que sei que vou voltar. Fico imaginando, a gente vive e morre, depois, sem memória nenhuma do que aconteceu no passado, só guardando nossos impulsos, e meus impulsos não são lá essas coisas, tenho maus impulsos, então de repente, só carregando isso, me ver de novo como um bebê, tomando mamadeira sem nenhum guia, só meus impulsos. Então temos que trabalhar nossos impulsos, nossa maneira de ser, nosso caráter, porque nós só conservamos isso. O carma só leva impulsos, não leva o eu. De forma que pela tradição nos manifestamos de novo carregando impulsos, por isso cada pessoa que nasce é diferente, pois carrega seus impulsos, só temos eles e mais nada. Não dá para dizer, eu sei que isso não dá certo e vou tentar evitar. A gente tem os mesmo impulsos. E aqueles que tem egos, apegos, desejos, por causa disso, sofrem. Nós sofremos, nós desejamos coisas. Desejamos segurança, filhos, amores, uma boa família e quando as coisas não funcionam como desejaríamos, nós sofremos. Essa é a raiz do sofrimento, aquilo que desejamos e esperamos. Se não tivéssemos nenhum desejo ou esperança não existiria nenhuma expectativa para ser frustrada. Nós sofremos por expectativas frustradas.