segunda-feira, 10 de março de 2014
Quem sou se tirar o "eu" ?
Aluno - Porquê?
Monge Genshô - Porque o “eu” é muito nítido, muito forte, você abre os olhos e vê os outros. Você tem ouvidos e ouve sons. E você pensa “Ah, isso sou eu!” Isso não é você, isso são sons, é a visão, são os cheiros. Porque você pensa que é o que ouve, o que vê, o que cheira, o que prova. Nós pensamos que nossa mente somos nós mesmos, essa conformação mental é nossa consciência, esse que pensa como Descartes “Penso, logo existo”. Eu penso, logo eu existo. Não é isso. Eu penso, só penso. Esse pensar não fez um “eu”. Assim como a chuva que cai não faz nada, não faz um “eu”. Nós pensamos, só pensamos. Esse pensar nos atrapalha, cria a ilusão de um “eu”. Por isso sentamos e tentamos fazer com que nossa mente se acalme. Porque quanto mais ela cogita, mais ela se agarra à sua identidade e tem medo que sua identidade desapareça. Tem tanto medo que a identidade desapareça que cria fantasias religiosas. “Eu vou continuar para sempre, eu tenho uma alma eterna. Quem morre não sou eu, é só o corpo, eu continuo depois.” Vemos isso nos desenhos animados. Tom, o gato, morre e a alma dele vai saindo do corpo e ele consegue agarrá-la pelo rabo e a puxa de volta. Nós criamos essas fantasias mas não existe uma alma eterna. Nós somos o movimento da vida. Nós somos eternidade. Nós temos continuidade sim, há continuidade, não há com ir embora. A morte é uma ilusão.
Pergunta - Então porque a vida inventou o pensamento?
Monge Gensho – A vida não inventou o pensamento. O pensamento é só uma função da vida. Porque as plantas fazem fotossíntese? É uma função das plantas fazerem fotossíntese. Porque nós temos sentido, os nossos sentidos nos dão informações, eu toco e percebo, esse contato produz uma sensação, essa sensação viaja pelos meus nervos até meu cérebro e assim eu tenho uma percepção – “Ah, o braço da cadeira” – essa percepção junto com outras percepções faz as formações mentais, porque eu tenho percepções mentais eu crio uma consciência que diz – “Eu sinto o braço da cadeira” – preciso do “eu” para sentir o braço da cadeira, não é que o “eu” seja uma coisa inútil, precisamos dele para viver, caso contrário não posso falar, me movimentar, fazer as coisas. Só que confundo o “eu” com minha verdadeira natureza. Minha verdadeira natureza não é o “eu”. Minha verdadeira natureza é a unidade de toda a vida. A minha verdadeira natureza não é contato, percepção, sensação, formação mental consciência. O “eu” é construído com esses sentidos, agora, se eu tirar isso, o que resta? É por isso que os homens inventaram as religiões, porque eles ficam apavorados com essa sensação, “meu eu irá desaparecer, eu sou o meu eu”! “Quem eu sou se tirar o eu”? Então surge a angústia, a angústia da morte, porque todos percebem que os corpos se desfazem, a gente morre, e a gente quer que o “eu” continue.
Por isso criamos as histórias de paraísos, reencarnações, almas eternas. Nós queremos uma solução para todas as coisas da vida. Então as religiões mais bem sucedidas são as que apresentam uma solução mais bem acabada, mais fácil. Imaginem, a religião mais popular no nosso meio que é o cristianismo, nos trouxe um conceito que no evangelho Cristo não ensina, mas que é criado depois por seus sucessores, principalmente Paulo - a idéia de um Deus que veio à terra, que é um salvador e que carrega os pecados do mundo. Isso resolve todo problema cármico, porque eu não pago mais pelos meus pecados, há um salvador que paga para mim. Se eu fiz algo errado se eu matei, mas me arrependo, vem um salvador paga pelos meus pecados e eu não preciso pagar as conseqüências, então eu retiro o carma, pois tem um salvador para pagar por mim.
Isso retirou dos homens a culpa, porque o pecado tem perdão, tem um salvador, tem um redentor. Vejam que isso é uma solução muito bem sucedida, pois com isso, você está liberto de todas as consequências, de todos os seus pecados, vai para o paraíso ser feliz para sempre, para toda a eternidade. Nunca mais nenhuma morte, para sempre, pela eternidade sem fim sempre com um eu, minha alma pessoal junto da divindade. É a solução, tudo resolvido.
Uma solução dessa tornou-se muito popular e é muito mais sucedida que as religiões que a antecederam, que não tinham soluções assim. Haviam os deuses do império romano ou grego, que eram seres humanos que maltratavam homens e as pessoas ficavam submetidas aos desejos desses deuses que eram não racionais ou não bondosos, você era joguete dos deuses, era uma solução falha. E o cristianismo tem todo o mérito de viver com uma solução assim que tudo resolve. Mas o budismo não tem essas soluções. A idéia do Zen budismo é: vou tirar todos os tapetes e bengalas nos quais você se apóia. Não há nenhum salvador e não há perdão, o que você fez tem conseqüências e essas conseqüências são inescapáveis, não há ninguém lá fora para socorrer você.
O budismo diz que você está enganado quando pensa que você é um “eu”. Você é muito mais que isso, se você sair desse enredamento, você se liberta. O dedo do budismo aponta para liberdade, para o despertar. Mas ele exige grande esforço, nada virá de graça, através de uma concessão divina ou intervenção de alguém, então você tem que trabalhar para se libertar. É o que a gente faz no sesshin. Não existe um caminho fácil no budismo, todo ele tem esforço. E não existe nenhuma promessa de fé ou qualquer coisa assim, não existe mágica no budismo.