quarta-feira, 12 de novembro de 2014
O apego
(continuação)
Monge Kômyô: O ensinamento de Buda é muito frequentemente tratado como medicinal, e ele mesmo se chama em alguns discursos, como um médico que vem trazer uma medicina, um remédio para curar as nossas mentes e por isso o Buda é frequentemente tratado como médico.
Na iconografia simbólica budista existe o Buda da medicina, que é apenas a “entronização” do simbolismo medicinal que o Buda manifesta. Ele vem trazendo um remédio, e esse simbolismo é interessante, porque ele procura mostrar que o ensinamento de Buda é uma profilaxia, ele serve para que nós todos nos preparemos para enfrentar as situações que nos levam ao orgulho, ao ódio, ao desespero, à incompreensão, aos conflitos. Neste momento, todos nos estamos vivendo situações assim, mas a prática e o que o Buda ofereceu, é uma medicina, é uma cura, e como toda medicina, ela precisa ser tomada com regularidade, para que a “doença” possa ser curada propriamente.
O egoísmo é a doença.
A primeira nobre verdade de Buda é de que a vida, a forma como nos captamos e experimentamos a vida, se caracteriza pela insatisfação. Cada um de nós se observar, e fizer uma avaliação pessoa, vai descobrir insatisfações em nossas vidas. A nossa mente é insatisfeita. A insatisfação leva à frustração, ao stress.
A segunda nobre verdade, é que o processo de insatisfação da mente se manifesta devido à ignorância, a esse vidro sujo, e somos insatisfeitos, porque não conseguimos enxergar a existência de maneira clara, e aquilo que nós percebemos não se adequa às expectativas do nosso eu, nós nos frustramos e nos tornamos insatisfeitos.
A terceira nobre verdade do Buda, em termos mais modernos, é que nós podemos cessar esse processo doentio em nossas mentes, não é impossível superar as situações. O campo de identificação profunda com aspectos egoístas é muito forte nas nossas mentes condicionadas, parece extremamente forte. A experiência que todos nós temos parece definitiva, mas não é, isso pode ser superado. Isso pode ser curado.
Eu me lembro quando eu era adolescente, eu me apaixonei por uma menina, nós namoramos por um tempo mas logo depois ela não quis mais o namoro. A experiência de dor era intensa, eu mal conseguia respirar. Era como se aquela dor não fosse acabar nunca mais. Era uma frustração e uma dor tão profundas que repito, eu tinha dificuldade de respirar. E eu olhava o quarto à minha volta e parecia que ia desabar sobre mim.
Todas as coisas que eu fazia, todos os lugares em que eu ia, eu pensava nela. E por consequência, como que um processo de sincronicidade, volta e meia aconteciam coisas que pareciam quase místicas, como alguém que passava por mim, falava um nome e era o nome dela, ou entrava em algum lugar, via uma cor, e era a cor que ela gostava.
Essa é a experiência do apego, do egoísmo. O meu desespero não era pela menina, mas com o fato de que as minhas expectativas foram frustradas. A projeção de paixão, a ideia de afeto, que pode ser no sentido de um namoro ou em qualquer sentido, tudo que nós vivemos é um afeto, o trabalho, a família, aqui na prática do retiro.
A minha mente em grande parte imatura, naquela parte não praticava nada, projetava intensamente. Eu queria aquela menina para mim, o meu “eu” queria que ela fizesse parte de mim mesmo. Mas isso não acontecia. Tenho 52 anos, e hoje em dia quando lembro daquele momento: nada. Mas naquela época, eu ia morrer.
É assim que trabalha a mente. Quando ela está perdida num espiral de identificação egóica, apego ou aversão, é como se o mundo inteiro se resumisse naquilo. Quando nós perdemos alguém que nós gostamos, entramos em desespero por isso. O que existe por trás desse desespero não é apenas o amor, dificilmente é o amor por aquela pessoa, mas é a vontade ou desejo do nosso “eu”, de fazer com que aquela pessoa continue viva para nós. Nós queremos que aquela pessoa não vá embora. Isso não é amor. O amor por alguém que nós perdemos, tem como resultado a tristeza, não o desespero. O desespero é egoísmo. A tristeza, a lamentação, faz parte do amor. Amamos, lamentamos. Mas não o desespero.
Existe um conto Zen, de uma Monja, uma grande Mestra muito respeitada por sua sabedoria, pela sua equanimidade e equilíbrio interior, e um certo dia ela soube que uma sobrinha dela tinha morrido. Ela soluçava de chorar. Os alunos dela chegaram até ela e disseram: “Mestra, a senhora está chorando tanto, e o desapego, o equilíbrio, a compreensão de que todas as coisas morrem”? A Mestra olhou para os alunos e falou: “Eu gostava muito dessa minha sobrinha, eu a amava”. Ela não estava em desespero, ela chorava, de tristeza.
Quando aprendemos a superar o apego, nós compreendemos a justa medida entre o sentimento de afeto e o desvio, o desespero, e sabemos viver todas as coisas, com a plenitude emocional saudável e natural. Não nos perdemos. (continua)