terça-feira, 8 de maio de 2018
Sabedoria acima da justiça
Neste texto, Thanissaro Bikkhu reflete sobre a ação social dos budistas. Segundo ele, a ideia de justiça como fundamento absoluto é eminentemente ocidental e cristã. Ele propõe que a busca por melhores condições sociais, do ponto de vista budista, seja implementada a partir da noção de sabedoria e de méritos.
DE Ṭhānissaro Bhikkhu
Alguns anos atrás, num de seus momentos mais inspirados, o The Onion (um jornal satírico dos EUA) noticiou o lançamento de um vídeo por uma seita fundamentalista budista no qual o porta-voz da seita anunciava que ele e seus correligionários desencadeariam ondas de paz e harmonia pelo mundo, ondas que ninguém seria capaz de impedir ou resistir. A notícia ainda dizia que, em resposta ao vídeo, o Departamento de Segurança Interna se comprometia a fazer tudo ao seu alcance para impedir que essas ondas chegassem aos Estados Unidos.
Como toda boa sátira, a notícia nos faz parar para pensar: por que a paz e harmonia seriam as piores “ameaças” que poderiam vir dos fundamentos dos ensinamentos do Buddha?
Eu acho que a resposta reside no fato de que o Buddha nunca tentou impor suas ideias de justiça ao mundo em geral, e isso foi muito sábio e sensível de sua parte. É fácil ver como ideias de justiça impostas podem ser uma ameaça ao bem-estar quando vêm dos outros; é bem mais difícil ver a ameaça quando são as nossas próprias idéias
O Buddha certamente tinha ideias claras do que é certo e errado, dos modos hábeis e inábeis de se engajar no mundo, mas quase não falava em justiça; ao invés disso, falava de ações que levariam à harmonia e à verdadeira felicidade no mundo, e, ao invés de explicar suas ideias para a harmonia no contexto da busca por um mundo justo, ele as apresentava no contexto de mérito: ações que buscam uma felicidade que é irrepreensível tanto em si mesma como nos meios de conduzir essa busca.
O conceito de mérito é, em geral, mal interpretado no ocidente. É comum que o mérito seja visto com a busca egoísta de seu próprio bem-estar, mas na verdade, ações que se qualificam como meritórias constituem a resposta preliminar do Buddha para um conjunto de perguntas que, para ele, consistem na base da sabedoria: “O que é hábil? O que é irrepreensível? Qual curso de ação que, ao ser tomado, conduz ao bem-estar e felicidade de longo prazo?” Se você busca a felicidade através dos três tipos de ações virtuosas – generosidade, virtude e o desenvolvimento de bem-querer universal – é difícil imaginar como essa felicidade poderia ser tachada de egoísta. Essas são as ações que, por meio de sua bondade inerente, tornam a sociedade humana habitável.
E o Buddha jamais impôs nem mesmo essas ações a ninguém como ordens ou obrigações. Quando questionado sobre a melhor ocasião para se dar um presente, ao invés de dizer: “aos budistas”, ele disse: “na ocasião em que a mente sentir confiança” (SN 3:24). De modo semelhante com a virtude: professores do Dhamma muitas vezes observaram corretamente que os preceitos do Buddha não são mandamentos, e sim regras de treinamento que se pode assumir voluntariamente. A respeito da prática de bem-querer universal, se trata de uma questão pessoal que não se pode impor a ninguém; para ser genuíno, deve vir voluntariamente do coração. O único “deve” presente nos ensinamentos do Buddha a respeito do mérito é um dever condicional: se você deseja felicidade verdadeira, isso é o que você deve fazer, não porque foi dito pelo Buddha, mas simplesmente porque é assim que causa e efeito funcionam no mundo.
Afinal de contas, o Buddha não reivindicou ser o representante de um deus criador ou divindade protetora. Ele não era um legislador universal. As únicas leis e ideias de justiça que ele formulou foram regras de conduta para aqueles que escolheram se ordenar nas sanghas de bhikkhus e bhikkhunis (ordens monásticas masculinas e femininas), nas quais aqueles que conduziam deveres comunais são dirigidos de modo a evitar qualquer influência provinda de desejo, aversão, ilusão ou medo. Fora desse contexto, o Buddha se pronunciou simplesmente como um especialista em acabar com o sofrimento. Sua autoridade provinha não de uma reivindicação ao poder, mas de sua honestidade e eficácia em sua própria busca por uma felicidade imortal.
Isso significa que ele não estava em posição de impor suas ideias a ninguém que não as aceitasse voluntariamente e não procurava se colocar em tal posição. Conforme o Cânone Páli, o pedido para que o Buddha assumisse uma posição de soberania e se tornasse um justo governante veio não de um de seus seguidores, mas de Māra (SN 4:20). Há diversas razões pelas quais ele recusou o pedido de Māra – e pelas quais aconselhava as pessoas a recusar tais pedidos igualmente.
Para começar, mesmo que você tentasse governar justamente, sempre haveria pessoas insatisfeitas com seu governo. Como o Buddha comentou com Māra, mesmo duas montanhas de lingotes de ouro não bastariam para satisfazer as vontades de qualquer pessoa. Não importa quão bem fossem distribuídas a riqueza e as oportunidades sob seu governo, sempre haveria aqueles insatisfeitos com sua fatia. Como resultado, sempre haveria aqueles que você teria que combater para manter-se no poder. E, para tentar manter-se no poder, você inevitavelmente desenvolve uma atitude onde os fins justificam os meios. Estes meios podem envolver violência, punições, te afastando mais e mais da capacidade de admitir a verdade, ou mesmo de querer ouvi-la (AN 3:70). Mesmo o mero fato de estar numa posição de poder significa que você está cercado de pessoas interesseiras e maquinadoras, que estão determinadas a impedi-lo de descobrir a verdade sobre eles (MN 90). Na opinião do Buddha, o poder político era tão perigoso que ele aconselhava seus monges a evitar, se possível, associar-se a um governante – um dos perigos seria que, caso o governante implementasse uma medida desastrosa, o monge poderia ser culpado por ela (Pc 83).
Outra razão para a relutância do Buddha em tentar impor suas idéias de justiça a outros foi sua percepção de que o esforço pela busca de justiça como um fim absoluto ia no sentido oposto ao principal objetivo de seus ensinamentos: o fim do sofrimento e a obtenção de uma felicidade irrepreensível. Ele nunca buscou impedir que governantes impusessem a justiça em seus reinos, mas nunca usou o Dhamma para justificar uma teoria da justiça. E nunca usou o ensinamento do kamma passado para justificar o mau trato de pessoas vulneráveis ou desfavorecidas: independente de qualquer que tenha sido o kamma passado, se você os tratar mal, o kamma do mau trato se torna seu. O fato de as pessoas estarem num estado de vulnerabilidade e pobreza não significa que seu kamma seja uma exigência para que continuem nessa situação. Não há modo de saber, de fora, que outros potenciais kármicos do passado estão aguardando para germinar.
Contudo, o Buddha ainda sim nunca encorajou seus seguidores a buscar a retaliação, ou seja, punição por males passados. O conflito entra a justiça retribuidora e a felicidade verdadeira é bem ilustrado pela famosa história de Aṅgulimāla (MN 86). Aṅgulimāla era um salteador que havia matado tantas pessoas – o cânone conta pelo menos 100, o Comentário, 999 – que ele usava um colar (māla) feito de seus dedos (aṅguli). Porém, depois de um encontro com o Buddha, ele mudou de opinião de tal modo que abandonou seu estilo de vida violento, despertou em si um senso de compaixão e, por fim, se tornou um arahant.
Essa é uma história popular, e a maioria de nós gosta de se identificar com Aṅgulimāla; se uma pessoa com seu histórico pode ganhar a iluminação, há esperança para todos nós. Mas, ao se identificar com ele, no esquecemos dos sentimentos daqueles que ele aterrorizou e dos parentes daqueles que ele matou, afinal, ele literalmente saiu impune do crime de assassinato. Daí fica fácil entender porque, conforme a história, quando Aṅgulimāla ia pedir esmolas após sua iluminação as pessoas lhe apedrejavam e ele voltava “com o sangue jorrando da sua cabeça cortada, com a sua tigela quebrada e com o seu manto externo rasgado”, ao que o Buddha o confortava, dizendo que seus ferimentos não eram nada comparado aos sofrimentos a que seria submetido se não houvesse alcançado o despertar. E, se as pessoas ultrajadas tivessem satisfeito sua sede por justiça, infligindo o sofrimento que pensavam merecer, ele não teria sequer tido a chance de despertar. Seu caso é um exemplo de situação na qual o fim do sofrimento precedeu a justiça no sentido comum da palavra.
O caso de Aṅgulimāla ilustra um princípio geral afirmado em AN 3:101: se o funcionamento do kamma exigisse uma justiça estrita estilo “olho por olho, dente por dente” – na qual seria preciso sofrer as conseqüências de cada um dos atos do mesmo modo que infligiu a outros – não haveria como ninguém alcançar o fim do sofrimento. O motivo para sermos capazes é porque, ainda que as ações de um certo tipo tenham um resultado correspondente, a intensidade de como se sente o resultado não é determinada somente pela ação original, mas também – e com maior importância – pelo nosso estado mental quando os resultados amadurecem. Se você desenvolveu bem-querer ilimitado e equanimidade e avançou no treinamento da virtude, discernimento e habilidade de não ser subjugado nem pelo prazer nem pela dor, então quando os resultados de más ações passadas amadurecerem, você mal os sentirá. Se não se treinou nesses caminhos, então mesmo os resultados de uma má ação insignificante podem remetê-lo ao inferno.
O Buddha ilustra esse princípio com três símiles. O primeiro é o mais fácil de digerir: os resultados de uma má ação passada são como um grande cristal salino. Uma mente destreinada é como um pequeno copo de água; uma mente bem treinada, como a água num rio grande e límpido. Se você colocar o sal dentro da água contida no copo, não poderia bebê-la, pois ficaria muito salgada, mas se colocar dentro do rio ainda pode beber dele, pois há muito mais água e é tão limpa. Em suma, uma metáfora atraente.
Porém, os outros dois símiles destacam a ideia de que o princípio que querem mostrar é contrário a algumas ideias muito básicas de justiça. Em um deles, má ação é comparada ao roubo de dinheiro; no outro, ao roubo de um bode. Em ambos os símiles, a mente destreinada é como uma pessoa pobre que, por ser pobre, é punida severamente por cometer qualquer um dos dois crimes, enquanto que a mente bem treinada é como a pessoa rica que, por ser rica, não é punida de forma alguma por nenhum deles. Nesses casos, as metáforas são bem menos atraentes, mas deixam claro que, por conta do kamma funcionar de um modo que recompensa o treinamento da mente para o fim do sofrimento, ele não pode garantir a justiça. Se insistirmos num sistema de kamma que pudesse garanti-la, o caminho para a libertação do sofrimento estaria fechado.
ESSE SISTEMA DE VALORES que dá preferência à felicidade acima da justiça quando há um conflito entre as duas não cai nas graças de muitos budistas ocidentais. “A justiça não seria um objetivo maior e mais nobre que a felicidade?” pensamos. A resposta curta para essa questão tem a ver com a compaixão do Buddha: vendo o que fizemos de mal no passado, sua compaixão se estendia ao malfeitor tanto quanto para aqueles que sofrem o mal. Por isso, ele ensinou o caminho para acabar com o sofrimento, seja esse sofrimento “merecido” ou não.
Contudo, para uma resposta longa teremos que parar para olhar para nós mesmos.
Muitos de nós nascidos e educados no ocidente, ainda que tenhamos rejeitado o monoteísmo que moldou nossa cultura, ainda tendemos a ser afeitos à ideia de que existem critérios objetivos de justiça aos quais todos deveriam se conformar. Quando afligidos pelas injustiças da sociedade, frequentemente expressamos nossas opiniões no sentido de corrigir os males não como sugestões de caminhos sábios a se seguir, mas como critérios objetivos de como todos teriam o dever de agir. Tendemos a não perceber, contudo, que a própria ideia de que esses critérios poderiam ser objetivos e de abrangência universal só fazem sentido numa visão de mundo monoteísta, uma no qual o universo foi criado num momento específico no tempo – por exemplo, pelo Deus de Abraão ou pelo Motor Imóvel de Aristóteles – com um propósito específico. Em outras palavras, nos atemos à ideia de uma justiça objetiva, ainda que tenhamos abandonado a visão de mundo que sustenta essa ideia e que lhe confere validade.
Por exemplo, a justiça retribuidora – aquela que busca corrigir males antigos punindo o primeiro malfeitor e/ou aqueles que reagiram desproporcionalmente a um primeiro mal – exige um ponto de início no tempo para que possamos determinar quem atirou a primeira pedra e zerar o placar de quem fez o que após essa provocação inicial.
A justiça restauradora – aquela que busca devolver a situação a seu estado correto após a primeira pedra ter sido lançada – exige não apenas um ponto inicial no tempo, mas também o que seria um bom estado ao qual devemos voltar.
A justiça distribuidora – aquela que busca determinar quem deveria ter o que, e como os recursos e oportunidades deveriam ser redistribuídos, retirando daqueles que os têm para cedê-los àqueles que deveriam tê-los – exige uma fonte comum que esteja acima e além dos indivíduos, a partir da qual todas as coisas venham e que determine os propósitos aos quais elas deveriam servir.
Somente quando suas respectivas condições são cumpridas é que essas formas de justiça podem ser consideradas objetivas e universais. Na visão de mundo do Buddha, entretanto, nenhuma dessas condições têm validade. Tem-se tentado importar ideias ocidentais de justiça objetiva para os ensinamentos do Buddha – alguns até mesmo sugerem que essa será uma das grandes contribuições ocidentais ao budismo, compensando uma suposta falta importante – mas não há maneira de forçar tais ideias ao Dhamma sem danificar seriamente a visão de mundo budista. Esse fato por si só fez com que muitos defendessem o descarte da visão de mundo budista e sua substituição por algo mais próximo de nossa cultura. Mas um olhar cuidadoso dessa visão de mundo e as conclusões que o Buddha tirou dela, mostra que os ensinamentos dele a respeito da busca de harmonia social sem recorrer a critérios objetivos de justiça a tornam recomendável.
O BUDDHA DESENVOLVEU SUA VISÃO DE MUNDO a partir dos três conhecimentos que obteve na noite de seu despertar.
No primeiro conhecimento, ele viu suas próprias vidas passadas, milhares e milhares de éons atrás, repetidamente subindo e descendo por muitos níveis de ser e através da evolução e colapso de muitos universos. Como disse depois, o ponto de início do processo – chamado saṁsāra, o “perambular” – é inconcebível. Não apenas impossível de acessar: inconcebível.
No segundo conhecimento, ele viu que o processo de morte e renascimento se aplicava a todos os seres no universo e que – por continuar desenrolando há tanto tempo – seria difícil encontrar quem não tenha sido sua mãe, pai, irmão, irmã, filho ou filha no curto desse tempo tão, tão longo. Ele também disse que o processo era movido por todas as muitas ações de todos os muitos seres, e que não serve aos desígnios de nenhum ser em particular. Como foi dito em um resumo do Dhamma, “Não há ninguém no comando” (MN 82). Isso significa que o universo não serve nenhum propósito claro ou único. Mais ainda, é possível que continue sem fim. Diferente de um universo monoteísta, com seu criador fazendo um juízo final, o saṁsāra não oferece nenhuma perspectiva de encerramento justo e imparcial – ou nem sequer um encerramento para além do nibbāna.
No contexto desses conhecimentos, é difícil ver a busca de justiça como um bem absoluto por três razões principais:
Primeiramente, dado o ensinamento do cristal salino – que nos diz que as pessoas sofrem mais a partir de seu estado mental presente do que por causa dos resultados de más ações passadas se manifestando no mundo externo – não importa quanta justiça você tente trazer ao mundo, as pessoas ainda sofrerão e ficarão insatisfeitas enquanto suas mentes forem destreinadas nas qualidades que as tornam impermeáveis ao sofrimento. É por isso que o Buddha, ao rejeitar o pedido de Māra, teceu o comentário sobre as duas montanhas de ouro sólido. As pessoas não apenas sofrem quando suas mentes são destreinadas: as qualidades de uma mente destreinada também as levam a destruir qualquer sistema de justiça que possa ser estabelecido no mundo. Enquanto as mentes das pessoas forem assim, a justiça não resolveria o problema de seu sofrimento, nem seria duradoura. Esse fato persiste independente da visão de mundo que se adote, seja a do Buddha ou outra mais moderna que conte com cosmos com vastas dimensões de tempo e sem um fim à vista.
Em segundo lugar, como observado acima, a ideia de uma resolução justa de um conflito exige uma história com um ponto de início claro – e um final claro, mas na periodização do universo budista, as histórias não têm um início claro e – potencialmente – nenhum fim. Não há nenhum modo de determinar quem fez o que primeiro ao longo de nossas muitas vidas, e não há modo de saber se um acerto de contas seria realmente um ponto final. Todas as coisas são eliminadas somente para se reagruparem de novo repetidamente. Isso significa que a justiça não pode ser vista como um fim, pois nesse universo não há fim além do nibbāna. Você não pode usar a justiça como um fim para justificar meios, pois isso – como tudo mais no universo – não é nada senão um meio. A harmonia só pode ser obtida ao se assegurar de que os meios claramente bons.
Em terceiro, para que haja um consenso sobre qual critério de justiça é correto, é preciso que haja consenso a respeito da história que justifica o uso da força para corrigir os males, mas num universo onde as fronteiras das histórias são impossíveis de se estabelecer, não há história com a qual todos possam concordar. Isso significa que as histórias têm que ser impostas – um fato que se sustenta mesmo que você não aceite as premissas de kamma e renascimento. O resultado é que as histórias, ao invés de nos unir, tendem as nos dividir: pense em todas as guerras políticas e religiosas, as revoluções e contra-revoluções que começaram por conta de histórias conflitantes a respeito de quem fez o que a quem e por qual razão. As discussões sobre qual história acreditar podem levar a paixões, conflitos e luta, que, na perspectiva do despertar do Buddha, nos mantém presos ao sofrimento no saṁsāra por muito tempo no futuro.
Essas são algumas razões pelas quais, após obter seus dois primeiros conhecimentos na noite do despertar, o Buddha decidiu que a maior utilidade para seu aprendizado seria voltar-se para dentro para encontrar as causas do saṁsāra em seu próprio coração e mente, e para escapar inteiramente do kamma através do treinamento de sua mente. Por esses motivos, quando ensinou a outros como resolver o problema do sofrimento, ele se concentrou primeiramente nas causas internas do sofrimento, e somente de modo secundário nas externas.
PORÉM, ISSO NÃO QUER DIZER que não haja espaço nos ensinamentos do Buddha para esforços no sentido de agir sobre a injustiça social, afinal, o próprio Buddha, ocasionalmente, descrevia as condições para a paz e harmonia em sociedade, juntamente com as recompensas provindas de ajudar os desfavorecidos. Porém, ele sempre incluiu seus ensinamentos sociais sob um contexto maior de seus ensinamentos, que é a sábia busca da felicidade. Quanto ensinou que um rei sábio é o que comparte sua riqueza para assegurar que todo seu povo tem o suficiente para viver, ele o fez não com a justiça em mente, mas como uma sábia forma de generosidade que promove uma sociedade estável.
Por isso, se você quer promover um programa de mudanças sociais que seja verdadeiro com os princípios budistas, seria sábio considerar o contexto do ensinamento do Buddha para a compreensão do bem-estar social, começando com os ensinamentos sobre o mérito. Em outras palavras, a busca da justiça, para estar de acordo com o Dhamma, tem que ser considerada como parte da prática de generosidade, virtude e o desenvolvimento de bem-querer universal.
No que isso implicaria? Para começar, exigiria de nós e que nos concentremos em primeiro lugar nos meios pelos quais se buscaria a mudança. A escolha de uma causa, desde que você considere inspiradora, seria inteiramente livre, mas teria que ser abordada de modo meritório.
Isso implicaria em colocar as mesmas condições na busca da justiça àquelas que o Buddha colocou na prática do mérito:
1) As pessoas devem ser encorajadas a participar no esforço apenas de livre e espontânea vontade, sem exigências, sem tentativas de impor a mudança social como um dever e sem tentativas de fazê-las sentirem-se culpadas por não se juntar à sua causa. Ao invés disso, a mudança social deveria ser apresentada como uma exultante oportunidade para expressar boas qualidades do coração. Para citar o cânone, a melhor maneira de promover essas qualidades é incorporá-las e elogiar práticas que levam ao benefício duradouro de quem também adotá-las.
2) Esforços pela mudança não deveriam envolver causar mal a si mesmo ou aos outros. “Não causar mal a si mesmo”, no contexto da generosidade, significa não ir além de sua capacidade, e um princípio semelhante poderia se aplicar aos outros: não pedir que façam sacrifícios que levariam ao seu mal. “Não causar mal a si mesmo” no contexto da virtude quer dizer não quebrar os preceitos – ou seja, não matar ou mentir sob nenhuma circunstância – e “não causar mal aos outros” seria não fazer com que eles quebrem os preceitos (AN 4:99). Afinal, um princípio subjacente do kamma é que as pessoas são agentes que recebem resultados de acordo com as ações que executam. Se tentar persuadi-los a quebrar os preceitos, você está tentando aumentar seus sofrimentos ao longo do tempo.
3) O bem-querer que motiva esses esforços teria que ser universal, sem exceções. Nas palavras do Buddha, você teria que proteger seu bem-querer o tempo todo, estando disposto a arriscar sua vida para tanto, do mesmo modo que uma mãe arriscaria sua vida por seu único filho (Sn 1:8). Isso significa manter o bem-querer por todos, independentemente de seu “merecimento”: bem-querer por aqueles que você considera culpados tanto quanto pelos que você considera inocentes, e também por aqueles que desaprovam seu programa e se interpõe a ele, não importa o quão violenta ou injusta a resistência deles se torne. Para que seu programa seja uma manifestação de bem-querer universal, é preciso se assegurar de que funciona para o benefício duradouro mesmo daqueles que inicialmente se opõe a ele.
HÁ DUAS VANTAGENS PRINCIPAIS em considerar o esforço pela justiça social dentro do contexto do mérito. A primeira é que, encorajando a generosidade, virtude e o desenvolvimento de bem-querer universal, você está lidando com estados mentais internos que levariam à injustiça não importa o quão bem uma sociedade possa ser estruturada. A generosidade ajuda a superar a cobiça que leva as pessoas a tirar vantagem do próximo injustamente; a virtude ajuda a evitar as mentiras, roubos e outras ações cruéis que causam discórdia; e o bem-querer universal ajuda a superar as várias formas de bairrismo que encorajam o favoritismo e outras formas de injustiça.
Em segundo: generosidade, virtude e bem-querer universal são atividades boas em si mesmas. Ainda que você seja inspirado pela história do despertar do Buddha para dedicar-se a elas, elas são claramente tão boas que não precisam de uma história que as justifique – e não seria necessário o tipo de histórias que serviriam para simplesmente nos dividir.
Considerar as tentativas de mudança social sob o princípio do kamma também implicaria em aceitar que quaisquer formas de injustiça que não estejam de acordo com a atividade de mérito teriam que ser tratadas com equanimidade, afinal, os resultados de algumas más ações passadas são tão fortes que nada pode ser feito a respeito, e caso pudessem ser aliviadas agora, mas através de atos inábeis – tais como mentir, matar, roubo e violência – a troca em termos de conseqüências em longo prazo não valeria a pena. Quaisquer tentativas nessa linha não seriam sábias, de acordo com a análise do Buddha.
A esse respeito, temos que voltar ao principal foco do Buddha: as causas internas do sofrimento. E a boa notícia é que não temos que esperar por uma sociedade perfeita para encontrar a felicidade verdadeira. É possível pôr fim aos nossos sofrimentos – parar de vagar pelo saṁsāra – não importa quão mal seja o mundo lá fora, e isso não deve ser confundido com uma busca egoísta. Seria, na verdade, mais egoísta causar constrangimento às pessoas por conta de seu desejo de se libertar com o propósito de fazê-las retroceder para auxiliar você e seus amigos no estabelecimento de seus ideais de justiça sem, contudo, ter um verdadeiro fim em vista. Um estado de justiça final e permanente é uma impossibilidade. Uma felicidade incondicionada disponível a todos, independente de seu passado kármico, não é.
E o caminho para se chegar a essa felicidade está longe de ser egoísta. Exige atividades de mérito – generosidade, virtude e bem-querer universal – que sempre espalham a felicidade duradoura no mundo: uma felicidade que cura velhas cisões e não cria nenhuma outra para substituí-las. Desse modo, aqueles que atingem essa felicidade são como estrelas que são tragadas para fora do espaço e tempo para entrar em buracos negros que são, em verdade, fontes de grande brilho: ao partir, eles liberam uma luz deslumbrante.
Original em inglês: https://www.dhammatalks.org/Archive/Writings/CrossIndexed/Uncollected/MiscEssays/Justice.html
Publicado em: https://l.facebook.com/l.php?u=https%3A%2F%2Fbudismoesociedade.com%2F2018%2F05%2F06%2Fsabedoria-ao-inves-de-justica%2F&h=ATN1WnGTkgoVijW4ZaZCwxPqAoH6cTOoVbXpFYsaIGceJF2OWvu3-R689YmQu_XooGDodSbjXcBn5t7c6VsSr9vyupndzeOr_FxUvGGH-IZSlS55u8o3pyeyMOqX6znDU1vrFR-xdDM
Traduzido por: Luiz Fernando Rodrigues