sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Treinados para ter um eu


2) Continuando nessa linha do sofrimento, o sofrimento físico está de certa forma dentro do esperado e estou conseguindo suportar, mas o que está me afligindo mais é a mente. O que posso fazer para apaziguar esse turbilhão?

Monge Genshô – Volte sempre para cá. Ouça o barulho do mar, os pássaros e cada vez que sua mente viajar volte para cá. Não há nada lá fora e se você repetir isso mil vezes a cada instante que ela viajar para passado e futuro, ela acabará se acalmando. Você pode passar o sesshin inteiro pensando no que faria com o dinheiro da loteria, mas estará jogando fora uma ótima oportunidade de obter clareza. Isso é só uma fantasia sobre o futuro, você pode acalentar fantasias sensuais durante cada zazen o sesshin inteiro, isso se chama naraku* zazen. Naraku é inferno, zazen dos infernos, inferno não no sentido Bíblico de céu e inferno, mas significando desordem, balbúrdia, agitação. Você mergulhado em imaginar prazeres vai perder seu zazen. Isso é um enorme desperdício de tempo, dinheiro e sofrimento, pois você investiu tudo isso para vir ao sesshin e uma vez sentado permite que sua mente viaje para futuro e passado. Volte sempre para cá.

3) Gostaria de entender melhor sobre o ego, como ele nasce? Sinto que às vezes estou conseguindo ir fundo no zazen e de repente algo me puxa de volta, acredito que esse algo seja o ego, como funciona isso?

Monge Genshô – Somos treinados para ter um ego e necessitamos dele para operar no mundo.  É como uma fantasia que vestimos para podermos transitar pelo mundo, ele é necessário. Veja por exemplo essa fantasia que estou usando, um manto, uma ordenação de Monge, um título de Sensei, o que é isso tudo senão uma construção? Não é uma realidade dentro de si mesma, está apenas operando dentro de uma cultura, a cultura do Zen, inseridos nessa cultura podemos operar como professor, Monges, noviços ou leigos. Isso é uma soma de agregados que são construídos desde a primeira infância quando nossos pais nos ensinam a linguagem e junto vem o “eu”. É preciso dizer “eu tenho fome”, “eu tenho sede”, então desde a infância existe uma identificação com algo abstrato chamado “eu” e que é ensinada pelos pais. Mesmo os animais têm essa identificação, pois sentem medo, paixão, ciúmes.

A linguagem é uma maravilhosa ferramenta e ao mesmo tempo em que aprendemos que temos um “eu” e aprendemos o oposto das coisas, certo e errado, também a linguagem permite que ensinemos o Dharma, ou seja, desconstruir tudo e permitir que você entenda que tudo não passa de uma construção de sua mente. A resposta à sua pergunta é que o ego é construído paulatinamente através de ferramentas poderosas e é essencial para operarmos no mundo. Por isso ele é um obstáculo tão gigantesco, pois a cada momento que desejamos operar no mundo sem isso e com uma noção maior de unidade de todos os seres, temos dificuldades, pois estamos voltados para nós mesmos, para nossos umbigos. Temos que olhar para fora e perceber o sofrimento das outras pessoas. Estamos tão auto-focados que não percebemos o que sentem as outras pessoas.

O ego é também uma maneira de não enxergarmos mais o mundo e não compreendê-lo, pois olhamos só para nós mesmos. Como funciona a mente de um psicopata ou estuprador? É uma mente que não enxerga o outro e seus sentimentos. Ele não vê na sua vítima um pai de família, uma criança ou uma pessoa incapaz de se defender e tão pouco percebe o sofrimento que está causando. Isso é percebido pelos homens, não é verdade? Todos percebem a doença dessa pessoa, mas a sociedade ainda está cega para o sofrimento de outros seres ignorando-os completamente, uma atitude claramente especista.

Vi outro dia uma notícia de pessoas escandalizadas, pois moradores de rua haviam matado cães e gatos para comer. Mas qual a diferença de matar um cão ou gato para comer e matar um boi, porco, galinhas ou peixes? Não existe diferença. O que acontece é que queremos privilegiar uma espécie que pensamos ser amiga do homem. É perfeitamente legítimo que uma pessoa morrendo de fome na rua mate um cão para comer. Ele não é diferente de vocês que vão ao açougue comprar um pedaço de boi ou porco para comer. São cegueiras humanas, pois estamos centrados em nós mesmos e não vemos o sofrimento dos outros seres.