quinta-feira, 19 de março de 2015

Um mundo abundante mas perdido



Aluno – Estou lendo um filósofo que fala sobre a secularização. Nos dias de hoje, numa sociedade tão secularizada, distante, profana, ele propõe uma sociedade pós-secular, onde os dois mundos poderiam e deveriam conversar, e eu percebo o zen no ocidente com uma apresentação um tanto quanto secular no discurso. O que o senhor acha disso?

Monge Genshô – Eu acho que a ideia é interessante, acho que o budismo tem essa enorme capacidade de adaptação. Essa imagem da água, que a gente diz no zen 'seja como a água' ela está muito certa. Quando olho a minha atuação no mundo como profissional e como monge simultaneamente, ela expressa isso, que é o meu problema.

 Então, você tem que saber transitar nos dois mundos e acho que há uma grande perda dessa secularização no mundo ocidental e no mundo oriental. Nós não devemos idealizar o mundo oriental, pois o mundo oriental se rendeu ao ocidente culturalmente e daí adota técnicas, formas, costumes, e a prática espiritual está sendo esquecida, jogada fora. Isso aconteceu fortemente no ocidente com algumas igrejas que resolveram se secularizar, começaram a jogar fora seus rituais, a maneira como os religiosos deviam se vestir... No início se pensava que isso ia aproximar e trazer o povo para dentro da instituição religiosa, mas não foi o que aconteceu.

E essa tentativa de secularização do caminho espiritual trouxe um enfraquecimento. Então nós não podemos ceder à secularização do caminho espiritual. Na hora de ser monges nós temos que ser monges verdadeiramente, temos que praticar verdadeiramente, temos que ir a fundo verdadeiramente, e não começar a ceder. Isso o ocidente também tem visto no zen. Você vai na Europa hoje e as monjas não querem raspar o cabelo, querem se maquiar, os monges querem mudar as roupas, ou querem se desligar da instituição... No discurso de serem livres começa a se perder a própria essência do zen. É como se o zen fosse diluído, como se fosse  enfraquecendo,  de repente você não tem mais aquilo que era o original.

A mesma coisa vem acontecendo no oriente, a mesma tendência de transformar a religião num mero negócio ou na venda de rituais, e isso não é uma coisa que tem acontecido só com o cristianismo ou com o budismo. Tem acontecido com tudo. Não existe caminho espiritual fácil ou diluído. Essa diluição é uma coisa que me dá uma sensação de pena, porque vamos perdendo a essência. Em todos os lugares isso tem acontecido. É uma tendência mundial em todas as religiões, em todos os caminhos espirituais, e a força, a mágica da ciência e da técnica vai fazendo parecer que o caminho espiritual é algo descartável.

 Nós vemos um mundo que parece perdido, infeliz, e daí começa a procurar a solução da felicidade na própria técnica, na própria química    , por isso nós temos as pílulas da felicidade, as pílulas contra depressão, etc... Então eu vejo um mundo que se perde. Para nós é um grande desafio aprendermos um caminho espiritual sério e trazê-lo para o mundo como ele é,  sem abdicar de nada, da abundância que a tecnologia trouxe, sem abdicar também da seriedade para conseguirmos manter viva a chama do caminho espiritual.

O que aconteceu desde a invenção e utilização das máquinas, na metade do século XIX, é que nós começamos a viver numa sociedade incrivelmente mais abundante, nós não tínhamos essa abundância antes, era frequente as pessoas passarem fome, não havia como transportar coisas de um lugar para o outro com facilidade, nós tivemos fome na China e na Irlanda, com grande mortalidade, porque não havia comida. Esse tipo de coisa só tem acontecido, no mundo moderno, em países bem longe da tecnologia, ou com regimes muito fechados ao comércio internacional. Mas no mundo integrado pelos transportes e pelo comércio exterior nunca mais houve isso. É difícil encontrar um agrupamento grande, hoje, no mundo ocidental, a quem faltem coisas essenciais. Isso fica restrito a faixas menos favorecidas, mas as nações em si tem, e o mundo tem recursos suficientes para alimentar o mundo todo, ele desperdiça ou joga fora, ou uns consomem muito mais do que precisariam, e outros menos. Então existe a injustiça da distribuição, mas na realidade existe uma abundância que a Terra nunca viu antes. No passado 90% da população tinha que trabalhar no campo para produzir alimento. Quando eu nasci 70% da população do Brasil trabalhava no campo. Hoje é o contrário, 30% da população trabalha no campo. Nos EUA, menos de 2% da população hoje produz todos os alimentos. Então nós vivemos em uma sociedade muito mais abundante, nós temos luz elétrica a menos de 100 anos, nós temos água encanada, coisa que não era disponível antes. Então nós vivemos numa sociedade mais rica mas essa sociedade abundante se perdeu.

Nós não sabemos ser felizes com tudo o que nós temos. Essa é uma longa conversa, para examinarmos os múltiplos aspectos de tudo isso. Eu conheço pessoas com abundância, que tem casa e todas as facilidades, e dizem 'eu estou deprimido, a vida não tem sentido'. Se estivesse ainda trabalhando, buscando comida no campo e plantando, e tendo que se esforçar, talvez não se sentisse assim, a vida teria um sentido de busca, mas ele não tem mais, então ele não sabe como viver, como ser feliz, tendo chegado ao paraíso da abundância, aquilo que os antigos achavam que seria o mundo perfeito, sempre alimento disponível, sempre conforto... Então essa é a grande perda.