Pergunta: O que são os espíritos famintos e as dez direções?
Monge Genshô: As dez direções são: norte, noroeste, nordeste, leste, sudeste, sudoeste, sul, oeste, em cima e embaixo. No oriente costuma-se dizer “dez direções” para expressar algo em todos os lugares, em todas as direções no plano e também nas 3 dimensões. Isso é interessante porque quando a gente fala sobre as direções cardeais, falamos sobre o pensamento de quem opera num plano só, viajando no mar, sem subir e nem descer. Então, quando falamos em dez direções, falamos sobre pensar além do plano, pensar também em cima e embaixo. Muitas coisas que vemos nos textos budistas têm origens culturais orientais, algumas hindus, outras chinesas e outras japonesas. Às vezes isso cria confusões desnecessárias, por isso é melhor conhecer a cultura para saber interpretar.
Tradicionalmente há uma divisão em seis reinos de existência. O reino mais baixo é o reino dos infernos, onde os sentimentos predominantes são a raiva e o ódio. Nós podemos fazer paralelos para o nosso mundo, porque nós podemos transitar por esses reinos. Não é que os reinos em si existam em um determinado lugar. Eles são expressões de estados em que um ser, ou seja, uma consciência pode existir. Então o reino dos infernos é onde há ódio, raiva, violência e solidariedade zero. Nós temos o reino dos infernos hoje, por exemplo, na Síria: chovem bombas do céu, matam-se famílias, crianças e ocasionalmente o reino dos infernos aparece em outros lugares. Ontem houve um atentado na Turquia, morreram centenas de pessoas, outras centenas ficaram feridas e isso vai gerar um recrudescimento da repressão do governo turco, causando represálias dos grupos oprimidos como os curdos e, assim, gira a roda do reino dos infernos.
O segundo reino é o reino dos espíritos famintos, também chamado de reino da ganância. Os espíritos famintos nunca estão contentes. Eles andam pelo mundo como fantasmas, querendo acumular coisas e ter sempre mais. Eles têm gargantas muito estreitas e corpos imensos, então a garganta deles não é suficiente para o tamanho de seus corpos, por isso estão sempre desesperados desejando mais. Os que roubam riquezas são um exemplo de espíritos famintos, porque nunca estão saciados. Por mais que você dê muito a eles, eles nunca estão satisfeitos e por isso eles não conseguem parar. Com os juros de hoje uma pessoa que tiver 1 milhão de reais aplicados vai ganhar 14% ao ano, isso dá mais ou menos 1% ao mês, o que daria uma renda mensal de 10 mil. Com quanto vocês estariam satisfeitos? As coisas funcionam assim: se você ganhar 5 mil, em breve você leva uma vida de 5 e se ocorrer algum evento inesperado não terá o suficiente. Se você passou para outro patamar, você tem gastos daquele patamar. Então perguntamos: por que quem tem 1 milhão não para? Porque vivem nesse patamar e não acham que essa quantia é suficiente. Dentro de todos nós aqui, mesmo que a gente não saiba, também tem um fantasma faminto que nunca vai ficar plenamente satisfeito. É triste ver que isso sucede também dentro das instituições religiosas. A gente descobre, comendo com oryoki, que é possível comer com 3 tigelas, com apenas 3 opções de comida e que isso é saudável. Você não vai ficar gordo e não precisará jogar nada fora. O oryoki é uma lição de simplicidade. Quando recebi a transmissão o Mestre me deu um de presente feito de laca, brilhante, preto, bonito, as peças se ajustavam perfeitamente uma dentro da outra, era um artesanato muito cuidadoso. Há lojas para monges no Japão que vendem esses produtos: oryokis, sinos, mantos, tudo feito de forma maravilhosa e isso vai contaminando ao longo do tempo todas as estruturas. Quando Buda fez o manto dele ele fez de retalhos de mortalhas, de tecido rejeitado, jogado fora, de lixo. Ele recortou os pedacinhos que eram bons, os juntou e essa é a origem do manto de Buda. Mas hoje, na medida em que o tempo vai passando, as pessoas vão querendo cerimônias bonitas com outros tipos de materiais. Tudo isso está dentro do segundo reino. Um dia veremos mantos bordados de ouro, com pedras preciosas, etc.
Pergunta: Há alguma forma de não ser assim?
Monge Genshô: Eu acho que isso está dentro de nós, sempre queremos uma coisa melhor. É como colocar ar-condicionado no carro. Depois de colocar ar-condicionado no carro, como ter um carro sem ar-condicionado? Toda história da humanidade é assim. No palácio de Versalhes não tem o conforto dessa casa de retiros, porque não tem banheiro, não tem chuveiro e o rei baixou uma ordem para recolherem os penicos pelo menos uma vez por semana, então imaginem o que era o cheiro do palácio. Antes, acho que o mundo era muito, muito fedorento. Para chegarmos nesse ponto de higiene demoramos muito e hoje jogamos nossos detritos no mar e contaminamos o mundo. Então ainda precisamos dar mais um outro passo, precisamos chegar num outro patamar, apesar do mundo nunca ter sido tão confortável como agora. Os espíritos famintos nunca cansam, nunca estão satisfeitos e, não se enganem, todos nós somos espíritos famintos e cada vez que vocês subirem um patamar qualquer de gasto, vai haver um outro patamar que vocês vão ambicionar. A maioria gasta tudo que ganha e se inventarem 14º, 15º e 16º salários, as pessoas gastarão tudo. Tudo isso ilustra o fato de que nós sempre queremos mais e quando tentamos consertar esse tipo de situação há enorme descontentamento.
Depois dos fantasmas famintos há um outro reino, o reino animal, ou o reino do obscurecimento. Esse estado é o estado de não compreensão, onde não adianta explicar. É como explicar algo para o seu cachorro. Esse obscurecimento é característica do que a gente chama de reino animal, mas apesar do nome muitas pessoas vivem nesse reino. As características do reino animal são: grande preguiça, come e deita, teoria de poupar energia, não fica em pé se pode estar sentado ou deitado, etc. É um estado de torpor. A pessoa chega em casa após um dia difícil e toma umas cervejas para relaxar. Bebe até ficar num estado de torpor, não conversa, não fala nada complicado, quer apenas fazer alguma coisa que não exija muito do seu pensamento, como alguém que senta na frente da televisão para ver um jogo de futebol, se enrola na bandeira e fica insultando o juiz, gritando palavrões, etc. Esse estado de torpor, de obscurecimento mental, é o estado animal. Não tem nada a ver com lucidez ou com clareza.
Nós passamos por esse sentimento também na hora de acordar de manhã às 4 horas no sesshin. O estado de torpor que faz alguém desejar ficar mais tempo na cama é característico do mundo animal e de todas as pessoas que não querem compreender nada. No mundo animal não há crítica nenhuma e isso não é uma coisa infensa aos seres humanos, tanto é que existe a síndrome de Estocolmo, em que uma pessoa é sequestrada e se apaixona pelo sequestrador. Isso foi analisado em um caso de uma sequestrada que se apaixonou pelo sequestrador na Suécia, ou seja, ela perdeu o senso crítico de tudo o que aconteceu e passou para um outro estágio mental.
Então o reino animal se caracteriza por ignorância, falta de senso crítico, falta de lucidez, torpor e imediatismo. Nós vivemos no reino animal quando sentamos na frente de um prato de comida muito cheio e comemos mesmo sabendo que não podemos comer daquele jeito, porque vamos engordar ou porque vamos passar mal. Exageramos porque não pensamos na consequência a longo prazo, só no momento imediato e isso é o comportamento mecânico atribuído ao reino animal. Claro que há outras considerações: não podemos dizer que não haja inteligência ou autoconsciência no reino animal, porque dependendo do animal existem graus diferentes de consciência, uma coisa é uma minhoca, outra é um pássaro, ou um golfinho. Assim também são os seres humanos e passamos para o reino seguinte: o reino humano.
A característica do reino humano é a variedade: ele pode sofrer, ficar alegre, pode ser espiritual, pode se comportar como um animal, pode ser ganancioso, pode ter raiva, como no reino dos infernos, etc. Ele tem tudo à disposição e por isso tem uma grande oportunidade para a iluminação. É por ter todas as experiências que você as conhece e tem suficiente inteligência para se criticar. Você pode sentar e perceber coisas como: “está acontecendo isso comigo”, “estou indo em tal direção”, “eu sinto tal inquietação”, “eu sinto tal oposição” e assim por diante. Nenhum sentimento é estranho para um ser humano, ele é capaz de entender todos. É possível entender o sentimento dos assassinos porque dentro de cada um tem um assassino em potencial, tem um ser ganancioso, tem um ser de raiva e ódio, tudo isso está dentro de todos nós. O que você vai demonstrar depende do que você treina, do que você pratica e o quanto você investe numa característica sua. Você pode fazer crescer uma característica e diminuir outra, depende de como você pratica. Para isso você tem que olhar sua mente, suas palavras, seus atos e é isso que na realidade nós fazemos aqui.
Nós tentamos interferir em todas as áreas: na mente através do zazen, nas ações de corpo pedindo que as pessoas façam determinados gestos, etc. Se tudo isso for feito automaticamente, oportunidades serão perdidas. Se uma pessoa vem servir você numa refeição, você tem que fazer gasshô, mas não é fazer gasshô por fazer e sim se lembrar “sinto profunda gratidão por ser servido, será que eu mereço ser servido, será que eu sou uma pessoa que realmente merece essa comida que chega aqui para mim?”. Recitamos a oração: “recebamos este alimento conscientes dos inumeráveis esforços necessários para que chegue até nós”, ou seja, não adianta dizer só a frase, você tem que pensar que alguém arou a terra, choveu, alguém plantou, alguém cuidou, alguém colheu, alguém transportou, houve um caminhão, um motorista caindo de sono andou dirigindo para carregar isso, tudo foi colocado dentro de sacos, passou por um beneficiamento, foi colocado por um repositor numa prateleira de supermercado, foi comprado e se nós fizermos a descrição de quantas pessoas estão envolvidas para que uma colher de arroz chegue no prato, nós vamos chegar à conclusão que foram milhares. Milhares de pessoas trabalharam para que tivesse aquele arroz ali no prato, porque cada parte dependeu de coisas que vieram de lugares diferentes do mundo. Máquinas que foram usadas tem componentes que foram fabricados em outros países para que aquela comida estivesse no seu prato. Você está consciente dos inumeráveis esforços que foram necessários? Estar consciente é a prática. Nada pode passar por nós como uma coisa que a gente faz automaticamente, sem prestar atenção. Dentro daquilo que a gente está fazendo tem uma quantidade enorme de ensinamentos embutidos e você tem que decodificar. Se você não estiver decodificando, você não vai entender o porquê.
Como seres humanos nós temos a oportunidade de ter consciência de todas as coisas. Eu sei que a quantidade de pessoas conscientes no mundo é baixa, na verdade muito baixa, porque nós vemos a todo instante a inconsciência funcionando e repercutindo os atos das pessoas. É necessário examinar esses atos. Se todo mundo agisse como eu, como seria o mundo? Dá para fazer isso? Aquilo é possível? Então, a oportunidade de ser um humano é a oportunidade de se dar conta de tudo isso, de praticar e de se iluminar. Todos os reinos inferiores não têm essa oportunidade.
O estágio seguinte é o das Asuras, que foi traduzido como: reino dos semideuses. Os semideuses são poderosos e estão sempre lutando, sempre querendo vencer. O reino dos semideuses está bem representado nas livrarias, com livros do tipo: “tenha sucesso”, “seja um vencedor”, “como ser um milionário”, “seja uma mulher poderosa” e temas assim. Esses livros expressam um desejo de competição, de ganhar sobre os outros, porque quando falamos em sucesso é porque há derrotados. É como o super-homem de Nietzsche subindo a pirâmide sobre os corpos dos outros homens derrotados. Não é a ideia de juntar coisas para si, isso aparece como um subproduto, e sim a vontade de estar acima dos outros. Esse reino é bem característico do mundo dos executivos, dos desportistas, dos políticos, etc.
Há um defeito no reino dos semideuses com relação ao mundo dos homens. Os homens têm altos e baixos, já os semideuses são vencedores, eles têm coisas, têm poder e estão sempre focados em ganhar, então compaixão não é algo que entra nesse reino. Compaixão aparece mais entre os seres humanos, que às vezes perdem tudo, às vezes ganham alguma coisa, mas permanecem sempre lutando na vida. Quando você olha para a sangha o que você vê são predominantemente seres humanos. Gente com um espírito animal não vem para a sangha, já que é melhor ficar em casa fumando um baseado ou bebendo cerveja. Pessoas com espíritos animais embrutecem, sentem menos, dormem mais, não têm vontade de lutar e adiam tudo para depois. Precisa de uma certa energia para uma busca espiritual, você precisa ser um ser humano e ter algum sofrimento para vir para a sangha. Um executivo bem sucedido também não vem para a sangha, porque enquanto ele está vivendo como um executivo, ele está vivendo na luta, o tempo todo. Eu teria andado muito mais no caminho espiritual se não tivesse perdido uma boa parte da minha vida sendo um executivo. Levantava de manhã, almoçava no trabalho, ou num almoço de negócios, jantava, ia a um coquetel, chegava em casa cansado e no outro dia começava tudo de novo. Não havia pausa ou tempo para outras atividades, assim como não havia energia para outra coisa a não ser essa luta do trabalho. Nessa posição você sente os sofrimentos intrínsecos da competição, mas não lhe faltam coisas ou poder, porque ele é poderoso e esse poder é encantador. O poder está lá no sobrenome da empresa num cartão de apresentação, você pode mostrar o crachá e é respeitado por isso, então você se sente poderoso. Essa é a característica dos semideuses e, sendo assim, eles não vão sentar para fazer zazen, nem têm tempo para isso.
O próximo reino é o dos deuses. O mundo dos deuses é outro estado, superior, porque não precisa lutar mais. Tudo veio de graça, como uma moça que nasceu muito linda, ganha dinheiro para ser fotografada e ganha muito mais do que jamais poderíamos imaginar. Ou o caso de grandes talentos quando não precisam de esforço. É muito diferente o comportamento de um pianista que precisou estudar muitos anos, passou horas e horas fazendo grande esforço, de alguém que ganhou fama e dinheiro repentinamente e sente que de certa forma não merece e fica tonto com aquilo. Nessa situação, o dinheiro escorre pelas mãos deles e surgem muitos amigos falsos e essas são características do estado do mundo dos deuses. Sem o esforço que os semideuses têm que fazer, sendo grandes herdeiros, ganhando Ferrari aos 18 anos, fazendo viagens pelo mundo todo de forma natural, sentindo dificuldade nenhuma, não sentem necessidade de se esforçar. Não há tantas pessoas no mundo nessa situação, mas essas pessoas não têm interesse algum pelo caminho espiritual, porque não sentem um sofrimento provindo do mundo externo. Todo o sofrimento que surge é um sofrimento interno. Às vezes ocorre suicídio por falta de sentido na vida, mas quando essa pessoa vai falar sobre o seu sofrimento, sobre as suas dificuldades, as pessoas normais sentem vontade de rir, porque para elas não é sofrimento real, ela nasceu em berço de ouro e não precisa fazer esforço algum, mas não quer dizer que não sintam angústia.
Temos um exemplo interessante: Buda nasceu no mundo dos deuses, ele era príncipe, seu pai tinha tudo, então deu tudo para ele. Não havia dificuldade nenhuma e só quando ele pensa na velhice, na doença e na morte, é que ele cai em si sobre a quantidade de angústia que o homem tem ao olhar sua própria finitude. Tudo o que eu tenho vai envelhecer, apodrecer e morrer. Todas as coisas que eu amo eu vou deixar de ver. Todo esse mundo em que estou vai desaparecer para mim. E não sei o que acontecerá depois da morte, isso é desconhecido, ninguém voltou para dizer como é do outro lado. Todos estão condenados, Buda pensou isso. Apesar de estar no mundo dos deuses ele teve esse lampejo, mas para conseguir fazer a prática espiritual, o que ele fez? Abandonou tudo, porque se ele ficasse lá no palácio não conseguiria praticar. Então ele abandonou tudo e se tornou um asceta sem roupa, sem comida, passando fome, mendigando, se martirizando, perdendo todo o conforto, etc. Foi assim que ele foi procurar e descobriu que estava exagerando quando despertou. É isso o que interessa para nós.
O que é o despertar? É uma característica que ocorre no reino humano, que é clareza, lucidez e compreensão perfeita do que tá acontecendo. Por que acontece assim? Como acontece? De onde vem isso? Todo o edifício teórico do budismo está construído em cima disso e os reinos não passam de representações didáticas que nos dão classificações para entendermos esses estados mentais que ocorrem em todos nós. Todos nós temos essas características e nós devemos ser agradecidos por sermos seres humanos com problemas humanos, porque é por estarmos nessa situação que temos a capacidade de despertar. Despertar é uma palavra melhor que iluminação.
Monge Genshô: As dez direções são: norte, noroeste, nordeste, leste, sudeste, sudoeste, sul, oeste, em cima e embaixo. No oriente costuma-se dizer “dez direções” para expressar algo em todos os lugares, em todas as direções no plano e também nas 3 dimensões. Isso é interessante porque quando a gente fala sobre as direções cardeais, falamos sobre o pensamento de quem opera num plano só, viajando no mar, sem subir e nem descer. Então, quando falamos em dez direções, falamos sobre pensar além do plano, pensar também em cima e embaixo. Muitas coisas que vemos nos textos budistas têm origens culturais orientais, algumas hindus, outras chinesas e outras japonesas. Às vezes isso cria confusões desnecessárias, por isso é melhor conhecer a cultura para saber interpretar.
Tradicionalmente há uma divisão em seis reinos de existência. O reino mais baixo é o reino dos infernos, onde os sentimentos predominantes são a raiva e o ódio. Nós podemos fazer paralelos para o nosso mundo, porque nós podemos transitar por esses reinos. Não é que os reinos em si existam em um determinado lugar. Eles são expressões de estados em que um ser, ou seja, uma consciência pode existir. Então o reino dos infernos é onde há ódio, raiva, violência e solidariedade zero. Nós temos o reino dos infernos hoje, por exemplo, na Síria: chovem bombas do céu, matam-se famílias, crianças e ocasionalmente o reino dos infernos aparece em outros lugares. Ontem houve um atentado na Turquia, morreram centenas de pessoas, outras centenas ficaram feridas e isso vai gerar um recrudescimento da repressão do governo turco, causando represálias dos grupos oprimidos como os curdos e, assim, gira a roda do reino dos infernos.
O segundo reino é o reino dos espíritos famintos, também chamado de reino da ganância. Os espíritos famintos nunca estão contentes. Eles andam pelo mundo como fantasmas, querendo acumular coisas e ter sempre mais. Eles têm gargantas muito estreitas e corpos imensos, então a garganta deles não é suficiente para o tamanho de seus corpos, por isso estão sempre desesperados desejando mais. Os que roubam riquezas são um exemplo de espíritos famintos, porque nunca estão saciados. Por mais que você dê muito a eles, eles nunca estão satisfeitos e por isso eles não conseguem parar. Com os juros de hoje uma pessoa que tiver 1 milhão de reais aplicados vai ganhar 14% ao ano, isso dá mais ou menos 1% ao mês, o que daria uma renda mensal de 10 mil. Com quanto vocês estariam satisfeitos? As coisas funcionam assim: se você ganhar 5 mil, em breve você leva uma vida de 5 e se ocorrer algum evento inesperado não terá o suficiente. Se você passou para outro patamar, você tem gastos daquele patamar. Então perguntamos: por que quem tem 1 milhão não para? Porque vivem nesse patamar e não acham que essa quantia é suficiente. Dentro de todos nós aqui, mesmo que a gente não saiba, também tem um fantasma faminto que nunca vai ficar plenamente satisfeito. É triste ver que isso sucede também dentro das instituições religiosas. A gente descobre, comendo com oryoki, que é possível comer com 3 tigelas, com apenas 3 opções de comida e que isso é saudável. Você não vai ficar gordo e não precisará jogar nada fora. O oryoki é uma lição de simplicidade. Quando recebi a transmissão o Mestre me deu um de presente feito de laca, brilhante, preto, bonito, as peças se ajustavam perfeitamente uma dentro da outra, era um artesanato muito cuidadoso. Há lojas para monges no Japão que vendem esses produtos: oryokis, sinos, mantos, tudo feito de forma maravilhosa e isso vai contaminando ao longo do tempo todas as estruturas. Quando Buda fez o manto dele ele fez de retalhos de mortalhas, de tecido rejeitado, jogado fora, de lixo. Ele recortou os pedacinhos que eram bons, os juntou e essa é a origem do manto de Buda. Mas hoje, na medida em que o tempo vai passando, as pessoas vão querendo cerimônias bonitas com outros tipos de materiais. Tudo isso está dentro do segundo reino. Um dia veremos mantos bordados de ouro, com pedras preciosas, etc.
Pergunta: Há alguma forma de não ser assim?
Monge Genshô: Eu acho que isso está dentro de nós, sempre queremos uma coisa melhor. É como colocar ar-condicionado no carro. Depois de colocar ar-condicionado no carro, como ter um carro sem ar-condicionado? Toda história da humanidade é assim. No palácio de Versalhes não tem o conforto dessa casa de retiros, porque não tem banheiro, não tem chuveiro e o rei baixou uma ordem para recolherem os penicos pelo menos uma vez por semana, então imaginem o que era o cheiro do palácio. Antes, acho que o mundo era muito, muito fedorento. Para chegarmos nesse ponto de higiene demoramos muito e hoje jogamos nossos detritos no mar e contaminamos o mundo. Então ainda precisamos dar mais um outro passo, precisamos chegar num outro patamar, apesar do mundo nunca ter sido tão confortável como agora. Os espíritos famintos nunca cansam, nunca estão satisfeitos e, não se enganem, todos nós somos espíritos famintos e cada vez que vocês subirem um patamar qualquer de gasto, vai haver um outro patamar que vocês vão ambicionar. A maioria gasta tudo que ganha e se inventarem 14º, 15º e 16º salários, as pessoas gastarão tudo. Tudo isso ilustra o fato de que nós sempre queremos mais e quando tentamos consertar esse tipo de situação há enorme descontentamento.
Depois dos fantasmas famintos há um outro reino, o reino animal, ou o reino do obscurecimento. Esse estado é o estado de não compreensão, onde não adianta explicar. É como explicar algo para o seu cachorro. Esse obscurecimento é característica do que a gente chama de reino animal, mas apesar do nome muitas pessoas vivem nesse reino. As características do reino animal são: grande preguiça, come e deita, teoria de poupar energia, não fica em pé se pode estar sentado ou deitado, etc. É um estado de torpor. A pessoa chega em casa após um dia difícil e toma umas cervejas para relaxar. Bebe até ficar num estado de torpor, não conversa, não fala nada complicado, quer apenas fazer alguma coisa que não exija muito do seu pensamento, como alguém que senta na frente da televisão para ver um jogo de futebol, se enrola na bandeira e fica insultando o juiz, gritando palavrões, etc. Esse estado de torpor, de obscurecimento mental, é o estado animal. Não tem nada a ver com lucidez ou com clareza.
Nós passamos por esse sentimento também na hora de acordar de manhã às 4 horas no sesshin. O estado de torpor que faz alguém desejar ficar mais tempo na cama é característico do mundo animal e de todas as pessoas que não querem compreender nada. No mundo animal não há crítica nenhuma e isso não é uma coisa infensa aos seres humanos, tanto é que existe a síndrome de Estocolmo, em que uma pessoa é sequestrada e se apaixona pelo sequestrador. Isso foi analisado em um caso de uma sequestrada que se apaixonou pelo sequestrador na Suécia, ou seja, ela perdeu o senso crítico de tudo o que aconteceu e passou para um outro estágio mental.
Então o reino animal se caracteriza por ignorância, falta de senso crítico, falta de lucidez, torpor e imediatismo. Nós vivemos no reino animal quando sentamos na frente de um prato de comida muito cheio e comemos mesmo sabendo que não podemos comer daquele jeito, porque vamos engordar ou porque vamos passar mal. Exageramos porque não pensamos na consequência a longo prazo, só no momento imediato e isso é o comportamento mecânico atribuído ao reino animal. Claro que há outras considerações: não podemos dizer que não haja inteligência ou autoconsciência no reino animal, porque dependendo do animal existem graus diferentes de consciência, uma coisa é uma minhoca, outra é um pássaro, ou um golfinho. Assim também são os seres humanos e passamos para o reino seguinte: o reino humano.
A característica do reino humano é a variedade: ele pode sofrer, ficar alegre, pode ser espiritual, pode se comportar como um animal, pode ser ganancioso, pode ter raiva, como no reino dos infernos, etc. Ele tem tudo à disposição e por isso tem uma grande oportunidade para a iluminação. É por ter todas as experiências que você as conhece e tem suficiente inteligência para se criticar. Você pode sentar e perceber coisas como: “está acontecendo isso comigo”, “estou indo em tal direção”, “eu sinto tal inquietação”, “eu sinto tal oposição” e assim por diante. Nenhum sentimento é estranho para um ser humano, ele é capaz de entender todos. É possível entender o sentimento dos assassinos porque dentro de cada um tem um assassino em potencial, tem um ser ganancioso, tem um ser de raiva e ódio, tudo isso está dentro de todos nós. O que você vai demonstrar depende do que você treina, do que você pratica e o quanto você investe numa característica sua. Você pode fazer crescer uma característica e diminuir outra, depende de como você pratica. Para isso você tem que olhar sua mente, suas palavras, seus atos e é isso que na realidade nós fazemos aqui.
Nós tentamos interferir em todas as áreas: na mente através do zazen, nas ações de corpo pedindo que as pessoas façam determinados gestos, etc. Se tudo isso for feito automaticamente, oportunidades serão perdidas. Se uma pessoa vem servir você numa refeição, você tem que fazer gasshô, mas não é fazer gasshô por fazer e sim se lembrar “sinto profunda gratidão por ser servido, será que eu mereço ser servido, será que eu sou uma pessoa que realmente merece essa comida que chega aqui para mim?”. Recitamos a oração: “recebamos este alimento conscientes dos inumeráveis esforços necessários para que chegue até nós”, ou seja, não adianta dizer só a frase, você tem que pensar que alguém arou a terra, choveu, alguém plantou, alguém cuidou, alguém colheu, alguém transportou, houve um caminhão, um motorista caindo de sono andou dirigindo para carregar isso, tudo foi colocado dentro de sacos, passou por um beneficiamento, foi colocado por um repositor numa prateleira de supermercado, foi comprado e se nós fizermos a descrição de quantas pessoas estão envolvidas para que uma colher de arroz chegue no prato, nós vamos chegar à conclusão que foram milhares. Milhares de pessoas trabalharam para que tivesse aquele arroz ali no prato, porque cada parte dependeu de coisas que vieram de lugares diferentes do mundo. Máquinas que foram usadas tem componentes que foram fabricados em outros países para que aquela comida estivesse no seu prato. Você está consciente dos inumeráveis esforços que foram necessários? Estar consciente é a prática. Nada pode passar por nós como uma coisa que a gente faz automaticamente, sem prestar atenção. Dentro daquilo que a gente está fazendo tem uma quantidade enorme de ensinamentos embutidos e você tem que decodificar. Se você não estiver decodificando, você não vai entender o porquê.
Como seres humanos nós temos a oportunidade de ter consciência de todas as coisas. Eu sei que a quantidade de pessoas conscientes no mundo é baixa, na verdade muito baixa, porque nós vemos a todo instante a inconsciência funcionando e repercutindo os atos das pessoas. É necessário examinar esses atos. Se todo mundo agisse como eu, como seria o mundo? Dá para fazer isso? Aquilo é possível? Então, a oportunidade de ser um humano é a oportunidade de se dar conta de tudo isso, de praticar e de se iluminar. Todos os reinos inferiores não têm essa oportunidade.
O estágio seguinte é o das Asuras, que foi traduzido como: reino dos semideuses. Os semideuses são poderosos e estão sempre lutando, sempre querendo vencer. O reino dos semideuses está bem representado nas livrarias, com livros do tipo: “tenha sucesso”, “seja um vencedor”, “como ser um milionário”, “seja uma mulher poderosa” e temas assim. Esses livros expressam um desejo de competição, de ganhar sobre os outros, porque quando falamos em sucesso é porque há derrotados. É como o super-homem de Nietzsche subindo a pirâmide sobre os corpos dos outros homens derrotados. Não é a ideia de juntar coisas para si, isso aparece como um subproduto, e sim a vontade de estar acima dos outros. Esse reino é bem característico do mundo dos executivos, dos desportistas, dos políticos, etc.
Há um defeito no reino dos semideuses com relação ao mundo dos homens. Os homens têm altos e baixos, já os semideuses são vencedores, eles têm coisas, têm poder e estão sempre focados em ganhar, então compaixão não é algo que entra nesse reino. Compaixão aparece mais entre os seres humanos, que às vezes perdem tudo, às vezes ganham alguma coisa, mas permanecem sempre lutando na vida. Quando você olha para a sangha o que você vê são predominantemente seres humanos. Gente com um espírito animal não vem para a sangha, já que é melhor ficar em casa fumando um baseado ou bebendo cerveja. Pessoas com espíritos animais embrutecem, sentem menos, dormem mais, não têm vontade de lutar e adiam tudo para depois. Precisa de uma certa energia para uma busca espiritual, você precisa ser um ser humano e ter algum sofrimento para vir para a sangha. Um executivo bem sucedido também não vem para a sangha, porque enquanto ele está vivendo como um executivo, ele está vivendo na luta, o tempo todo. Eu teria andado muito mais no caminho espiritual se não tivesse perdido uma boa parte da minha vida sendo um executivo. Levantava de manhã, almoçava no trabalho, ou num almoço de negócios, jantava, ia a um coquetel, chegava em casa cansado e no outro dia começava tudo de novo. Não havia pausa ou tempo para outras atividades, assim como não havia energia para outra coisa a não ser essa luta do trabalho. Nessa posição você sente os sofrimentos intrínsecos da competição, mas não lhe faltam coisas ou poder, porque ele é poderoso e esse poder é encantador. O poder está lá no sobrenome da empresa num cartão de apresentação, você pode mostrar o crachá e é respeitado por isso, então você se sente poderoso. Essa é a característica dos semideuses e, sendo assim, eles não vão sentar para fazer zazen, nem têm tempo para isso.
O próximo reino é o dos deuses. O mundo dos deuses é outro estado, superior, porque não precisa lutar mais. Tudo veio de graça, como uma moça que nasceu muito linda, ganha dinheiro para ser fotografada e ganha muito mais do que jamais poderíamos imaginar. Ou o caso de grandes talentos quando não precisam de esforço. É muito diferente o comportamento de um pianista que precisou estudar muitos anos, passou horas e horas fazendo grande esforço, de alguém que ganhou fama e dinheiro repentinamente e sente que de certa forma não merece e fica tonto com aquilo. Nessa situação, o dinheiro escorre pelas mãos deles e surgem muitos amigos falsos e essas são características do estado do mundo dos deuses. Sem o esforço que os semideuses têm que fazer, sendo grandes herdeiros, ganhando Ferrari aos 18 anos, fazendo viagens pelo mundo todo de forma natural, sentindo dificuldade nenhuma, não sentem necessidade de se esforçar. Não há tantas pessoas no mundo nessa situação, mas essas pessoas não têm interesse algum pelo caminho espiritual, porque não sentem um sofrimento provindo do mundo externo. Todo o sofrimento que surge é um sofrimento interno. Às vezes ocorre suicídio por falta de sentido na vida, mas quando essa pessoa vai falar sobre o seu sofrimento, sobre as suas dificuldades, as pessoas normais sentem vontade de rir, porque para elas não é sofrimento real, ela nasceu em berço de ouro e não precisa fazer esforço algum, mas não quer dizer que não sintam angústia.
Temos um exemplo interessante: Buda nasceu no mundo dos deuses, ele era príncipe, seu pai tinha tudo, então deu tudo para ele. Não havia dificuldade nenhuma e só quando ele pensa na velhice, na doença e na morte, é que ele cai em si sobre a quantidade de angústia que o homem tem ao olhar sua própria finitude. Tudo o que eu tenho vai envelhecer, apodrecer e morrer. Todas as coisas que eu amo eu vou deixar de ver. Todo esse mundo em que estou vai desaparecer para mim. E não sei o que acontecerá depois da morte, isso é desconhecido, ninguém voltou para dizer como é do outro lado. Todos estão condenados, Buda pensou isso. Apesar de estar no mundo dos deuses ele teve esse lampejo, mas para conseguir fazer a prática espiritual, o que ele fez? Abandonou tudo, porque se ele ficasse lá no palácio não conseguiria praticar. Então ele abandonou tudo e se tornou um asceta sem roupa, sem comida, passando fome, mendigando, se martirizando, perdendo todo o conforto, etc. Foi assim que ele foi procurar e descobriu que estava exagerando quando despertou. É isso o que interessa para nós.
O que é o despertar? É uma característica que ocorre no reino humano, que é clareza, lucidez e compreensão perfeita do que tá acontecendo. Por que acontece assim? Como acontece? De onde vem isso? Todo o edifício teórico do budismo está construído em cima disso e os reinos não passam de representações didáticas que nos dão classificações para entendermos esses estados mentais que ocorrem em todos nós. Todos nós temos essas características e nós devemos ser agradecidos por sermos seres humanos com problemas humanos, porque é por estarmos nessa situação que temos a capacidade de despertar. Despertar é uma palavra melhor que iluminação.