sexta-feira, 14 de junho de 2013
Saber que se estava errado
Pergunta: Sobre esse monge que sumiu, será que ele não viu que estava errado, ficou com vergonha e foi embora?
Monge Genshô - Os sutras não explicam. Os sutras são muito severos com Devadhata. Infelizmente, se você prestar bastante atenção na história da humanidade, olhe os homens deste século, que criaram grandes tragédias e te perguntarei se alguns deles deixou algum documento dizendo que se arrepende, que estava errado. Hitler deixou? Pol Pot, no Camboja, que conseguiu matar um terço da população de seu país, deixou? Stalin deixou? Franco deixou? Nenhum disse que estava errado. Nem os terroristas brasileiros que mataram pessoas, espalharam bombas etc, eles também não pensam que estavam errados. Por outro lado, os torturadores, os militares que mataram e torturaram os terroristas, também não me lembro deles dizendo que estavam errados. Todo mundo estava certo. Todo mundo “pensa” que estava certo. Os terroristas diziam que lutavam pela liberdade. Na verdade, lutavam para criar outro tipo de ditadura. Os militares diziam que estavam lutando numa guerra contra subversivos, que queriam derrubar o governo, que era uma ditadura. Os dois lados foram criminosos. Mas não li nenhum texto de nenhum deles até agora dizendo – “eu estava errado”. Minto, acho que Fernando Gabeira disse que estava errado. Mas é uma exceção. É interessante essa pergunta, porque é difícil as pessoas dizerem – “Eu estava errado na minha opinião, eu escravizei meu povo”. Você acredita que Kadafi vá dizer que está errado por que provocou uma guerra civil e não quer renunciar? Ou Assad? Ou Ahmadinejad no Irã que provavelmente roubou as eleições e depois esmagou os protestos de seu povo? Todos eles se consideram certos.
Aluno: É que com relação a este monge, eu pensei que uma pessoa que tem convívio com um mestre, sabedoria, conhecimento, geralmente essas pessoas não vêem outros lados, normalmente quem vive no mosteiro vê vários lados diferentes.
Monge Genshô – Deveria...
Aluno – E esses conquistadores só olham para a frente, não olham para os lados e nem para trás, vão em frente conquistando, conquistando...
Monge Gensho - Nós temos muitas esperanças nos monges porque estão lá e lêem os textos. Mas nós também aqui na Sangha vamos ali, fazemos cerimônia e lemos os textos. Você toma refúgio no Buda, no Dharma e na Sangha, você diz que a Sangha é o lugar da harmonia, você faz as cerimônias dizendo essas coisas.
Quando olhamos a história do Cristianismo, não era a religião do amor e da compaixão? Mas é a religião que fez as cruzadas. Quantas e quantas vezes os religiosos abençoaram canhões? E cada um dos lados dizia – “Deus está do nosso lado”. Mesmo você lendo textos, o que eu quero dizer é que dentro dos mosteiros você vai encontrar homens. Eles lêem, repetem as coisas. Eu estou dizendo, não estou dizendo? Então no dia que vocês perderem a paciência com os outros, vocês dirão – “Ah, o monge disse isso, mas está acontecendo assim”. E se um dia vocês me virem perdendo a paciência vocês dirão – “Ah pois é, o monge sabe, mas”... Entre saber e fazer certo, há uma certa distância.
O monge saberia...mas a história não tem mostrado isso. Vocês já ouviram uma passagem chamada “O Remorso”, de um poema de Guerra Junqueiro "A Caridade e a Justiça"? Ele imagina Judas. E Judas vai fugindo pelo caminho, depois da prisão de Cristo e encontra um vulto de gigante e Judas lhe pergunta - Quem és tu?
"Convulso de terror, fugiu... Mas nesse instante
Surgiu-lhe frente a frente um vulto de gigante,
Que bradou:
-É chegado enfim o teu castigo!
O traidor teve medo e balbuciou:
-Amigo, que pretendes de mim? Dize, por quem esperas? Quem és tu?
-“O Remorso, um caçador de feras
Disse o gigante. Eu ando há mais de seis mil anos
A caçar pelo mundo as almas dos tiranos,
Do traidor, do ladrão, do vil, do celerado;
E depois de as prender tenho-as encarcerado
Na enormíssima jaula atroz da expiação.
E quando eu entro ali na imensa confusão
De tigres, de leões, d’abutres, de chacais,
De rugidos febris e de gritos bestiais,
Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto:
Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
E quando em suma algum dos monstros quer lutar
Azorrago-o com a luz febril do meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como num cão mendigo.
Já sabes quem eu sou, Judas; anda comigo!”
Então Judas pega o dinheiro e dá para ele. E o Remorso lhe diz - “Não, não Judas, guarda esse ouro, guarda que eu quero derretê-lo e pingar-to gota a gota na tua consciência pútrida e execrável durante toda a eternidade ilimitada e calma, vem Judas, anda comigo”.
Todos os crimes têm dentro de si sua própria tortura e castigo. Isso é a própria lei do carma. No final do poema Cristo fala com ele e o perdoa, e Judas diz – “Não quero teu perdão, sou mais justo do que tu” - e enforca-se. Mesmo naquele momento, se julgava mais certo, mais justo do que Cristo.
Talvez Devadhata tenha a mesma idéia – “Sou mais certo e mais justo” – e talvez todos esses que a gente vê, esses homens que nós estamos vendo hoje matando seus próprios concidadãos, são pessoas que se julgam certos, mais justos que os outros, esse é um grande problema.
Marcadores:
Ahmadinejad,
arrependimento,
Assad,
budismo,
Devadhatta,
erro,
esmagar,
Guerra Junqueiro,
Hitler,
Judas,
Kadafi,
Mao,
mosteiro,
perdão,
Pol Pot,
povo,
reconhecimento,
remorso,
Stalin,
zen