Aluno:
O budismo acredita em fantasmas e espíritos inquietos?
Monge
Genshô: Há duas maneiras de responder isso. Resposta de monge Zen: o budismo não é religião de acreditar e sim de despertar. Pensando
um pouquinho mais longe, Kodo Sawaki, Mestre Zen, respondeu uma vez: “se algo
ou alguma coisa se manifesta nesse mundo, está tão perdido quanto nós”. Vou dar
uma terceira resposta. Um Monge Zen estava numa guerra e os soldados queriam se
abrigar em uma casa, mas disseram que o local era mal assombrado e então eles
ficaram apavorados. Um monge Zen passava pelo local e eles perguntaram se ele
podia fazer algo sobre a situação. O monge disse: “posso sim, vou dormir lá hoje
à noite” e então ele dormiu. No outro dia de manhã disse para os soldados:
“podem ir, não há fantasmas ou espíritos rondando aquela casa” e então os
soldados foram. Um dos soldados conhecia um pouco da doutrina budista e foi até
o monge perguntar: “mas me diga uma coisa, o Zen não acredita nessa história de
fantasma, não é?” e o monge respondeu: “não”. O soldado falou então: “mas o que
você fez lá, afinal de contas?” e o Monge disse: “eu expliquei isso para os fantasmas”.
Aluno:
Eu sou psicoterapeuta e um dos trabalhos que eu faço é com vítimas de violência
sexual. Tenho uma dificuldade imensa em atender essas vítimas e pensar que elas
são responsáveis pelo que aconteceu com elas, no sentido delas terem carma para
terem sofrido aquilo, assim como o agressor teve carma para causar esse mal.
Monge
Genshô: Também é verdade o que você disse. O agressor é
assim, mas nós temos que ir pouquinho mais longe e ver que dentro de cada um de
nós há um agressor. Tem um assassino, um torturador e tem um sujeito capaz de
ficar com raiva e recorrer à violência. Você tem filhos?
Aluno:
Duas filhas.
Monge
Genshô: Alguém sequestra as suas filhas e você conhece tudo
que pode estar sendo feito com elas. Você pega um cúmplice, pergunta onde estão
suas filhas e ele diz que não vai dizer. Existe a opção de torturá-lo para que
ele diga. O que acontece com você? Tortura?
Aluno:
Eu acho que sim.
Monge
Genshô: Portanto dentro de você há um torturador. Quando a
gente se envolve emocionalmente, nós percebemos que na realidade somos assim. Há
um poema de um Mestre Zen vietnamita, Thich Nhat Hanh, que diz: “eu sou o
estuprador, eu sou a vítima, eu sou o assassino, eu sou o assassinado, eu
sou...” e vai narrando tudo isso, porque na realidade nós seres humanos somos todas
essas pessoas. Então, na realidade, a vítima também é potencialmente agressora,
é por causa disso que ela está neste mundo onde coisas desse tipo acontecem. É
tolice você olhar no espelho e dizer: “eu sou inteiramente bom, eu não faria
nenhum mal”. Isso não é verdadeiro. Dadas as determinadas condições surge
dentro de você aquilo que você nem acreditaria que existe, basta ler as histórias
das guerras, basta ler os testemunhos dos soldados que depois que voltam não
conseguem nem falar. Só podem falar com os seus pares. Há um livro famoso
chamado “Nada de novo no fronte ocidental”, de Erich Maria Remarque, sobre a Primeira
Guerra Mundial. Ele vai para a guerra, mata, leva bombas, vê os amigos sendo
explodidos, numa cena alguém entra na caverna anunciando que duas pessoas
morreram do lado de fora e que se quiserem enterrar vão ter que raspar das
paredes os corpos deles com colheres. Viver tudo isso causou pesadelos no autor
que foi escrevendo o livro durante as noites em que acordava sem conseguir mais
dormir e então se sentava para escrever. Quando chegou na época da Segunda
Guerra Mundial Hitler mandou queimar os livros de Erich Maria Remarque, porque
eram pacifistas.
Mas eu queria contar sobre um episódio desse
livro, quando ele volta para casa e encontra a família. A mãe dele pergunta:
“estão te dando cobertor lá? A comida é boa, meu filho?” e ele dormia na
trincheira, na lama, comia sabe-se lá o que. Ele não consegue responder para a
mãe, não consegue explicar a situação. Quando ele vai para uma escola, um
professor o chama na frente e diz: “aqui está um herói” e pede para ele falar
com as crianças, mas ele também não consegue. Então ele quer apenas uma coisa:
voltar para as trincheiras, porque lá pelo menos os seus companheiros que
também estão matando e morrendo conseguem compreender a situação, então ele
pode conversar, mas esse aqui já é um mundo com o qual ele não consegue se
comunicar. Então dentro de nós há coisas que nós não conseguimos imaginar, só
faltam as condições para que essas coisas surjam.
Como Monge eu já fiz várias entrevistas
assim, onde as pessoas sentam e contam que foram violentadas ou violentados,
porque não acontece só com as mulheres, acontece com os homens e acontecem de
mulheres que abusam de meninos, coisa da qual ninguém fala. Você, enquanto
Monge, escutando esses relatos pensa: “mas o que posso fazer com relação a
isso?” e a receita é: chore junto. Porque pelo menos nós temos que ter
companheiros que entendam dos nossos sofrimentos.
(continua...)