sexta-feira, 25 de julho de 2014

Eu POSSO perder tudo

Quadro de Eduardo Salinas

 (continuação)
Muitos anos atrás, eu estava numa empresa e era sócio minoritário, tinha uma pequena parte de uma empresa, para a qual eu fui convidado por um proprietário que tinha outras fábricas. Isso foi no Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. E, resumindo a história, num belo dia, nós estávamos exportando e eu fui no Banco do Brasil para receber um contrato de câmbio, e fui informado que o proprietário das empresas tinha retirado todo o dinheiro no exterior, na Alemanha, e nos deixado sem as receitas das exportações que tínhamos feito. De repente, eu entendi que tinha sido um grande golpe, um grande desfalque. Ele estava mal e resolveu receber todo o dinheiro dos contratos de câmbio e ficar no seu país de origem, na Alemanha. Eu perguntei a um advogado o que eu poderia fazer e ele disse que até que nós conseguíssemos resolver, conseguíssemos eventualmente receber alguma coisa desse desfalque, tudo já teria quebrado aqui, que não valeria a pena e a expressão usada por ele foi “colocar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”. Você vai gastar dinheiro e não vai obter nada.

Então, simplificando, eu era avalista da empresa e, naquele momento, vi que perderia tudo: nome, crédito, empresa, tudo que tinha sido construído durante alguns anos. Eu voltei pra casa pensando: “Bom, desabou tudo. Tudo que eu construí, como diretor de indústrias, etc e tal, se desfez agora, porque eu vou ser conhecido como alguém que estava numa empresa que faliu”. Até que você explique que seu sócio fez um grande desfalque, isso não soluciona nada. Então, fui dirigindo até que cheguei em casa e pensei: “o que eu posso fazer se eu vou perder tudo, meus bens, minha casa, tudo mais? Como eu vou explicar isso? Então, eu fui até o meu quarto e tinha um zafu. Aí eu peguei o zafu (almofada de meditação), fechei a porta do quarto, coloquei o zafu no chão... é, não tem solução ... então me sentei em zazen. Isso foi na década de 80, faz mais de 30 anos. Sentei no zafu e olhei para porta fechada. E não levou muito tempo. De repente, eu percebi uma coisa muito simples: eu vou perder tudo, mas eu POSSO perder tudo. Eu tenho a capacidade de perder tudo. Essa simples idéia “eu posso perder tudo e eu posso construir tudo também. Eu sou livre, sou completamente livre para perder tudo. Eu posso perder tudo: carro, casa, nome, crédito, qualquer coisa. Eu sou livre para perder”. Aí, me levantei do zafu, entrei no carro e voltei para o Vale dos Sinos. Falei com cada um dos credores da empresa e passo a passo, comecei vendendo estoques, devolvendo máquinas, etc., fazendo uma coisa depois da outra. Eu resolvi tudo. Consegui resolver absolutamente tudo. E isso aconteceu porque eu pensei “Sim, eu posso perder tudo. Eu tenho condição de perder tudo”.

É mais ou menos como perder a carteira com todos os documentos. O que que você tem que fazer? Passo a passo, fazer cada documento de novo. Só isso. Ligar, bloquear, etc. Fazer tudo de novo, passo a passo. Tudo você conseguirá. É como morrer, também. Receber uma notícia de que tem uma doença terminal. “Ah, eu sei que vou morrer”. Como eu contei ontem, daquela aluna que veio aqui em janeiro, aqui em Florianópolis e falou comigo: “Monge, eu vou morrer esse ano. É a terceira reincidência e eu sei que eu vou morrer. O que que eu faço”? Simples, vamos preparar para morrer. Vamos nos sentar em zazen e nos preparar para ter uma boa mente para morrer. Não é tão complicado. É passo a passo, simplesmente continuar andando para a frente, porque se você andar para a frente, dez trilhões de léguas, encontrará a si mesmo, no mesmo lugar. Nós temos a capacidade de encontrarmos a nós mesmos, além dos sonhos e dos jogos todos da vida. Só ir andando e resolvendo as coisas à medida  que aparecem.

É como no sesshin. Eu estou fazendo zazen, está difícil fazer esse zazen, está doendo a minha perna. Está bem. Depois tem kinhin. Posso esperar pelo kinhin, aí, relaxo. Então, zazen de novo. E basta fazer um zazen de cada vez. É só esse. Só mais esse. E, agora, mais outro. Depois, mais outro. Depois, o outro dia. Só isso. Nenhum dos seres que estão aí fora fica olhando no calendário. Os pássaros, os peixes, as plantas, eles não olham no calendário. Eles vivem um dia de cada vez. Então, a única coisa que nós precisamos fazer é dar um passo.

Meu grande problema, no evento que eu contei para vocês, foi toda a imaginação. Tudo o que eu imaginei, naquele trajeto até Porto Alegre, dirigindo e pensando “vou perder tudo”, foi horrível. Me lembro até hoje. Mas, depois que eu vi que tinha capacidade de perder tudo, então, pude voltar e resolver tudo. E também todos os problemas se dissolveram na minha frente.