quinta-feira, 10 de julho de 2014
Repetir sem fim é uma prisão
(Palestra numero 4 em Goiânia)
A prática da meditação tem uma função primordial, ela nos estabiliza. Basta nós olharmos os rostos depois, os rostos mudam, ficam mais descontraídos, mais calmos. Nossa vida é uma vida muito estressante, muito agitada.
Meio milhão de anos atrás a gente vivia com medo também, podia sair um tigre debaixo de uma árvore, podia pular um leopardo, então, nossas vidas nunca foram realmente tranquilas. Talvez esse tempo que nós estamos vivendo agora seja excepcionalmente bom, e nós não percebemos. Todos nós estamos alimentados, levantamos de manhã e temos comida. Esse não é um privilégio tão comum assim. Nós temos roupas, não estamos passando frio, dormimos em nossas camas. Até hoje muitas pessoas na terra não têm oportunidade tão tranquila de viver.
Mas mesmo assim nós somos assaltados por medos fundamentais. O medo mais fundamental é esse fato de nós percebermos nossa transitoriedade, o fato de sabermos que nós nascemos e sabermos que nós vamos morrer. E então os homens desenvolveram mil métodos para escapar desse medo e em geral são crenças de que a vida continue de alguma forma, que nós nascemos de novo, que vamos para um paraíso, ou que temos almas eternas que são a nossa verdadeira realidade. E que nós mesmos somos eternos, e que nossos corpos são temporários. Nós queremos pensar assim.
O budismo é a única religião que veio com uma outra abordagem. Esse “eu” em que nós tanto acreditamos e que nós queremos que viva para sempre, esse “eu” é uma ilusão. Nós sempre fomos a própria vida, sempre fomos eternos em nós mesmos, na nossa verdadeira natureza. Mas este momento, este eu, é uma ilusão provocada pelo nosso funcionamento, pela nossa operação da mente. Por isso, Descartes disse: “Penso, logo existo” para testar o fato de existir, ele disse, “eu penso, então eu existo”, porque existe alguém que pensa.
O budismo não diz isso, o budismo diz algo diferente. “Eu penso, por isso penso que existo”. Pensem um pouco nessa frase. É porque eu penso, que minha mente está funcionando, eu sinto o vento, eu olho o céu, porque eu tenho sentidos, porque eu estou funcionando, eu penso que existo. Quem já fez uma operação e foi anestesiado? Vocês lembram do momento em que foram anestesiados e do momento em que acordaram? O que houve? Nada. Sabe porquê nada? Porque vocês não estavam funcionando, a mente não estava operando e, como a mente não estava operando, então não havia consciência de existência, do momento em que você desmaia ao momento em que você acorda, parece que não há intervalo algum.
Na verdade entre cada manifestação da vida e a próxima, não há intervalo, quando nós morremos, imediatamente acordamos, com outra manifestação ou em outra dimensão, ou em uma vida, só que nós não lembramos quem nós somos, porque para lembrar quem é, precisa-se construir um eu, aí você começa uma nova construção, recebe um nome dos pais, como aconteceu na vida de cada um de vocês. Cada um pensa: comecei do início e construí minha própria personalidade. Só que essa personalidade veio de antes, de alguma forma ela pré existiu, porque não existem efeitos sem causas. Vocês não estariam aqui se não houvessem causas pregressas.
Então vocês têm uma personalidade que surgiu vinda de antes. Então nós podemos dizer: você renasceu, mas não é o mesmo eu. É você, mas não é você. Essa é que é a essência, não existem almas eternas, nem espíritos nem nada assim. Só existe a vida, a vida continuamente se manifestando. Não somos nós que vivemos a vida, a vida é que nos vive.
Nós temos a oportunidade de acordar do sonho e, a cada vida, se nós acordarmos do sonho, nós teremos clareza e lucidez e todo o sofrimento desaparece, por isso, nosso objetivo ao meditar é obter clareza, lucidez e sabedoria, pois essa sabedoria pode nos libertar desse ciclo de repetições, porque na verdade, ficar repetindo sempre a mesma vida com uma personalidade sempre semelhante e repetindo os mesmos erros e sofrendo do mesmo modo, isso é que é um castigo.
Portanto, nirvana significa: extinguir essa chama que tende sempre a se manifestar e integrar-se magnífica e gloriosamente à unidade, de modo que todo sofrimento possa desaparecer, porque ele é inerente à vida. Basta você estar vivo, e vai haver sofrimento, é inerente à vida, não tem jeito.
Então, desejar viver eternamente, repetindo as mesmas coisas, tendo a mesma memória, a mesma personalidade, é que é uma prisão.
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