quarta-feira, 2 de julho de 2014
Um pouco de sofrimento
(Terceira palestra em retiro, Goiânia 2014)
Há muitos pequenos detalhes na prática do Zen e as questões de postura são extremamente importantes. Não adianta se sentar e ficar observando os outros, ou pensando “ah eu estou quieto, ele se mexeu”. Isso são pensamentos centrados no “eu”. “Eu” estou, “eu” sou, e os outros não. Essa postura que nós praticamos não é natural. Natural seria ficar deitado, mas deitado a gente dorme, então por isso tem que praticar sentado, com as pernas cruzadas e tem que ser um pouco desconfortável, para não dormir.
Mas o professor está olhando e, quando você dorme, sem querer, a cabeça balança pra frente e pra trás e a gente sabe que ele está dormindo, então, no monastério há um cargo chamado “Jikidô”, ele fica na porta e cumprimenta todo mundo que entra. Ele é o “dono” do zendo, ele troca os incensos nos intervalos e todo intervalo ele pega um bastão de madeira chamado “kyosaku”, mais um menos de 1 metro e 20 e passa atrás dos monges e se um monge está dormindo, ele bate com o bastão em um ponto das costas que tem muitos pontos de acupuntura, ao mesmo tempo desperta e relaxa tensões e muitas pessoas acham o resultado agradável e relaxante.
Mas se for um monge mais importante, mais antigo, ele não bate, mas bate no monge ao lado, e o do lado sabe que está apanhando por causa do superior. E às vezes nós perguntamos: “mas nós podemos bater no mestre”? E o mestre do zendo diz, “todo mundo é igual, se estiver dormindo, pode bater no mestre”! Mas nunca ninguém batia no Mestre, passávamos longe dele. Os leigos são tratados diferentemente, para receber o kyosaku tem que pedir fazendo gasshô (mãos postas).
Nos sesshins há muito mais zazens, começamos às 4 da manhã e fazemos 2 zazens, e, para a cabeça não ter tempo de se perturbar, a gente faz assim: bateu na porta, 20 minutos, vai ao banheiro, bota a roupa, chega no zendo e senta, porque quando o Mestre chegar todos devem estar sentados. Quando ele chega, estão todos sentados, quietos 4:20 da manhã e temos 1:30 de zazen pela frente, e só após é que vai haver a cerimônia, depois o café da manhã, o samu (trabalho) e então voltamos para o zendo para nos sentarmos de novo. E assim vai, senta, e senta. Então eu já fiz sesshin com 16 zazens, até as 22:00, das 4 da manhã às 22 hs. E assim não há corpo que aguente, principalmente se você ficar fazendo as palestras sentado com as pernas cruzadas, e as refeições assim também. E aí o único alívio é o kinhin (meditação andando) ou o trabalho e você dá graças aos Budas e todos os Bodhisattvas que tem trabalho, porque no trabalho você se mexe.
Muitos até gostam de receber o kyosaku, o monge vem e você pede , se inclina para frente, recebe, agradece, então dá para se mexer, não é? Nos nossos sesshins eu costumo ser parcimonioso, então passo bem pouco kyosaku, para o pessoal não ficar pedindo muito. Porque dá trabalho também, você tem que levantar, bater nos ombros de todo mundo que está tenso, e surgem também outras coisas, eventualmente angústia, às vezes as pessoas estão sentadas e começam a chorar, você pergunta porquê e ela não sabe. É só emoção sem saber de onde veio, só as lágrimas correndo. Por isso o rakusu pode ficar sujo de lágrimas de sangue, então ele pode ficar muito bom, muito precioso por causa disso.
Nós estávamos fazendo um pouco mais de zazens nos retiros, mas quando chega ao ponto de sofrimento excessivo, a dor não funciona mais. Um pouco de sofrimento é bom, para ficar aqui, ter que resolver isso. Mas depois de um certo ponto, a pessoa só pensa que quer que termine, que quer que acabe, e aí então esse pensamento ocupa toda a mente e não dá mais para sair. Então um pouco de sofrimento é bom, mas não demais.
Mas você não vai conseguir nada sem sofrimento. O sofrimento é o caminho mais curto para a iluminação. Todos os tipos de sofrimento. A gente nota isso na prática. A pessoa tem um problema na vida, aí ele vem praticar, e faz zazen, estuda, e aí a vida de repente fica muito boa, maravilhosa. Se a vida ficou ótima, não pratica mais. Então isso são coisas que acontecem naturalmente com o ser humano.
Dizem que Buda não ensina no mundo dos deuses, porque os deuses vivem vidas muito prazerosas, e são vidas tão boas, tão cheias de prazer, com tantos méritos e carmas tão bons, que os deuses jogam flores no Dharma, mas eles não praticam. Essa ideia de deuses no budismo é um pouco diferente do que a gente costuma pensar. “Os Deuses” para o budismo vivem num reino de grande mérito. Vamos pensar que aqui no nosso mundo seriam aqueles que nascem em famílias muito ricas, sem problemas, tudo sempre foi fácil, nunca tem nenhuma dificuldade, tudo que eles querem aparece. Os deuses no Brasil vão para a ilha de Caras...
Então, eles não têm interesse na prática espiritual, eles querem é ficar distantes das pessoas que têm sofrimento. Quando eles estão nas festas e vem o manobrista entregar o carro, ou qualquer coisa assim, eles nunca olham para eles nos olhos, eles nunca vêem os garis que estão na rua, nada disso. Eu gostaria de dar uma tarefa para vocês, que pode mudar um pouquinho o nosso mundo: quando alguém estiver fazendo um serviço assim, um gari na rua, vão até ele e agradeçam.
Isso pode ser feito também nos banheiros, tem gente que limpa os banheiros e todos fingem que eles são invisíveis. Vocês vão até essa pessoa e digam “muito obrigada pelo seu trabalho”. Vocês vão ter muito boa surpresa porque ninguém faz isso e para essas pessoas isso é muito precioso.
(continua, palestra decupada da gravação por Rachel San)
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