quarta-feira, 30 de julho de 2014

Monges zen e casamento



Quadro de Eduardo Salinas
Pergunta: Monge, o senhor pode falar um pouco sobre o contexto da fala de Buda que diz sobre o abandono da família?

Monge Genshô: Ela perguntou sobre Shukke Tokudo, que é a ordenação de Monge. Então, Buda deixou sua família – mulher, filho – e foi pra floresta praticar. E, nos primeiros tempos, a tradição sempre foi os monges deixarem o lar e seguirem apenas o caminho monástico. Isso durou milênios na realidade. Os Monges Zen japoneses casam-se desde 1872, ou seja, é um acontecimento recente na história do Zen. Mas, como eu já expliquei numa palestra anterior que foi publicada, o vinaya indiano, que são as primeiras regras do tempo de Buda, foram abandonadas pelo Zen já por volta do ano 720 d.C.

Pai-Chang, na China, adaptou as regras para um outro contexto. Na Índia e no sul da Ásia, mendigar sua própria comida era uma coisa admissível. Mas, na China, isso não era admissível. Nos países frios, coisas assim, ter um contingente de pessoas vivendo de mendicância, não era uma boa ideia, de modo que Pai-Chang escreveu novas regras, e essas regras já têm 1400 anos para o zen. Essas regras enfatizam o trabalho. Pai-Chang disse: “Dia sem trabalho, dia sem comida”, de modo que os Monges foram morar em monastérios, cultivavam a terra, e produziam sua própria comida.

Assim, aparecem duas perspectivas diferentes. Uma perspectiva diz: “Ah, os monges deixaram de depender da sangha, e isso os tornou independentes”. Então, a distância entre o monge e a sangha aumentou, porque antes, se a sangha não sustentasse o monge, ele morria de fome, mas ele estava sempre disponível para ajudar a sangha em tudo, ele não tinha outras obrigações. Isso é uma crítica. A outra perspectiva é “ah, mas isso deu força ao Zen”, certa independência dos monastérios. Os monastérios conseguiram sobreviver bem às perseguições e tudo mais, porque podiam se isolar, podiam viver em comunidade, sem depender do mundo externo. Então, essa distância lhes deu força de sobrevivência, e isso levou o Zen a chegar ao ponto de ter 5 milhões de monges na China, numa época em que a China não tinha 50 milhões de habitantes.

Era tanta gente, que o Império resolveu acabar com essa brincadeira, porque entendeu que os homens iam para o monastério para ser monges e escapar do serviço militar. Então, aconteceram grandes perseguições e destruições. Três grandes perseguições ao budismo aconteceram dentro da China, por causa dessa questão. Mas, nessa época ainda, os monges viviam isolados, longe de suas famílias.

Nós estamos vivendo  os últimos dois séculos – o século passado e esse – que é uma outra época para o budismo, em que os monges zen japoneses são, em certa medida, leigos, porque casam, trabalham, etc, não dependem da sangha para viver. Mas, de outro lado, isso facilitou muito a geração de monges, e trouxe para uma classe sacerdotal no Zen, uma plêiade de leigos de alta qualidade, que daí então, com sua dedicação, conseguem fazer o budismo progredir. Isso deu ao Zen uma possibilidade muito maior de expansão no Ocidente.  Isso pode ser olhado tanto como decadência, como com adaptação e flexibilidade a novos tempos, porque os sacerdotes casados do Zen deram a este uma força diferente. O que está sendo atingido por isso é só o formato institucional. Se alguém quiser ser um monge celibatário hoje, ele pode fazer isso também. Já tivemos grandes exemplos no século XX mesmo, grandes monges celibatários, que passaram sua vida asceticamente somente trabalhando, vivendo na pobreza, sem casa, como Kodo Sawaki, o mestre sem lar e sem templo, muito conhecido no século XX e muito influente. Então, esse caminho ainda subsiste dentro do Zen.