segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O eu necessário


Pergunta: Quando o senhor diz que somos iguais, e que devemos esquecer-nos de nós mesmos. Vem-me à mente que a busca do autoconhecimento já não é mais tão importante nesta jornada [espiritual]. É isso?

Monge Genshô – O autoconhecimento é importante sim. A dificuldade aqui é que já estou apontando o fim do caminho, mas existe um caminho para andar, e enquanto você percorre este caminho, você só poderá o fazer com a ajuda deste seu “eu”. A gente diz: - “Esqueça seu eu!”. Mas como você pode esquecer seu “eu”, se você não usar este “eu” para agir neste mundo? Então, até que você chegue a esta dissolução, você só pode caminhar consigo mesma, com seu “eu”. Isto é um conflito, não é? Uma grande dificuldade. Mas todos começam uma prática espiritual procurando alguma coisa para si mesmos, e portanto existe uma mente aquisitiva, afinal “para quem você procura?”. – “Ah, eu procuro para mim!”. Não é esta a resposta? Quando eu venho sentar para fazer meditação, ou venho fazer ioga... quem vem? – “Eu venho!”. Para quem você quer esta libertação? – “Para mim”. Mas você só vai se libertar quando esquecer o “mim”. Mas você precisa deste “mim” para vir fazer a prática, não é? Estou adquirindo a estabilidade, este é o primeiro passo. Esta condição, no entanto, ainda denota uma condição de aprisionamento, como acontece com alguns santos, cheios de virtudes, mas que muitas vezes ainda têm uma postura baseada numa mente aquisitiva.
Na prática do zen é diferente. Um dos meus primeiros professores se encontrou com um homem que estava passando por um grande drama pessoal. Sentaram-se à mesa, e o homem disse: - “Mestre, eu estou passando por um problema muito grande. Eu vou me embebedar! É algo sem solução...”. E o mestre falou: - “Então eu vou me embebedar junto com você!”. Este é um mestre zen! Porque se tem um sofrimento ali insolúvel, e tudo o que você vê que pode fazer é se embebedar, eu me embebedo junto com você, porque eu sofro junto com você. Se não tem solução, eu sofro junto com você.
Algumas vezes as pessoas me perguntam: - “Mas monge, vem alguém e me conta um sofrimento cheio de ego... ‘ah, aconteceu isso, acabou, fui abandonado e etc.’... a pessoa chora, se esperneia. O que o senhor diz numa circunstância destas? O senhor diz pra ela que é ilusão?”. Eu não vou dizer que dor de cotovelo tem “meu” e “minha”, tem o ego envolvido. Não, eu vou chorar junto com a pessoa. O que mais posso fazer? Mas eu sei que daqui a mais um tempo passa, e passa com todos. Já passou comigo, passa para vocês também, não é? (risos).

Pergunta: Mestre, voltando a esta questão da ausência do “eu”, imagino que isso gera um grande conflito na mente da pessoa. Pois nós só nos percebemos, quando também percebemos que o “outro” existe, numa espécie de contraste. Ou seja, porque o outro é diferente é que “eu me percebo como eu”...

Monge Genshô – Este é um verdadeiro koan, não é? Porque nós estamos acostumados a pensar que o mundo só se organiza a partir de uma personalidade estruturada através de um “eu”. A nossa própria psicologia age assim. Quando você vai até um terapeuta, ele faz o quê? Vamos estruturar esta personalidade para ela ser resiliente, resistente ao mundo, para se levantar da crise e enxergar bem o “eu” e o “outro”. A abordagem do budismo é completamente diversa, mas nós não dizemos que vamos aniquilar o “eu”, não é isso, pois você precisa deste “eu” para transitar no mundo. Mas este “eu” é uma mera construção. Vocês foram apresentados para mim agora: - “Ah, este é o monge Genshô”. Monge é uma construção, Genshô é um nome que foi dado durante uma ordenação por um mestre, eu não escolhi. Assim como o nome que minha mãe me deu. Esta roupa é uma fantasia que está sendo usada há séculos, milênios, dentro do zen. Tudo isto são construções. E elas [as construções] são úteis para fazer esta palestra aqui e agora. Se eu entrasse sem roupa, se não tivesse título nem nada, quem me ouviria? Perguntariam “quem é você?”. E eu diria “não sei, não tenho uma boa ideia sobre isso” [risos]. Isso teria credibilidade? Não, não teria! Então na realidade vocês me ouvem, também, por causa desta construção. Mas eu sei que estes paramentos todos são uma construídos, e que quando eu chego ao hotel e penduro a roupa no cabide, o monge Genshô não está pendurado no cabide. E daí eu posso usar outras personalidades. Quando eu sou consultor e entro numa empresa, me indagam: - “Sr. Chalegre, o que o senhor pensa disso?”. Aí eu digo “penso isso, isso e isso!”. Cheio de opinião e certeza. É outra vida, é outro “eu”.