sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O abandono de si mesmo


Esses dias coloquei em um post de uma palestra que dei em Goiânia, a declaração de Matsu, quando alguém relata a história de que Buda menino, nasceu e saiu andando, e choveu uma chuva doce e pétalas, flores caíram do céu, e ele apontou com uma mão pra cima e outra para baixo, há uma estátua de Buda menino assim, e disse: “entre o céu e a terra eu sou o mais honrado”. Comentário do mestre Zen Matsu: “se eu estivesse lá nesta hora, eu o teria matado a pauladas e jogado sua carne aos cachorros”.

Esse é o comentário do Zen, por quê? Porque o evento em si contradita o “espírito” do budismo, uma vez que transforma Buda em um ser extraordinário, capaz de andar e falar logo depois de nascido e ainda se achando mais honrado entre o céu e a terra do que todos os seres, ou seja, é a própria declaração da separação.

Mas voltando ao início da palestra, sobre a reverência, a quem fazemos a reverencia? Nós não podemos fazer a reverência para outro, assim como não podemos fazer reverência para Buda, porque aquele que entra na sala e faz uma reverência para Buda, é um herege no Zen, porque nós não fazemos reverências para uma estátua de Buda, nós fazemos reverências para o “ideal” de sermos capazes como Buda, de despertar. É esta a idéia na qual nós tomamos refúgio, nós dizemos no início do ritual da manhã: “eu tomo refúgio no Buda”. Não é na pessoa, eu tomo refúgio na possibilidade de despertar esse ideal, eu sei que é possível que eu desperte, junto com todos os seres. Eu não tomo refúgio em uma pessoa, porque a pessoa representada no altar aqui atrás, é morta, extinta, há muito tempo. Não é possível uma reencarnação de Buda por exemplo, isso que a gente vê às vezes na imprensa, é um absurdo, não existe isso. Primeiro porque não existe reencarnação no budismo, existe continuidade cármica, não de um “eu”; segundo porque Buda, ao extinguir sua energia cármica com sua iluminação, ao esgotar seu carma, não tem porque retornar. É justamente esta a vitória, deixar de ser onda, para ser oceano, ser uno com tudo, mas não ser uma energia que força novas manifestações, com todas as suas consequências. Isso é que é visto como aprisionamento.

Aquilo que em geral é visto como vitória sobre a morte nascer de novo, ganhar novo corpo, ser um eu eterno, do ponto de vista budista é um tremendo de um castigo porque ficar condenado a repetir isso, aqui, de novo, sempre, a mesma coisa, isso é um aprisionamento. E despertar seria se libertar desse aprisionamento. Então é o contrário de ambicionar ter um eu eterno. Na realidade, é ambicionar ter uma integração perfeita, completa, absoluta e não uma eternidade de um eu. Se nós fossemos pesquisar profundamente em outras tradições religiosas, mesmo na tradição religiosa da casa onde nós estamos, uma casa católica, nós acharíamos a mesma ideia, porque a idéia de estar junto a Deus significaria um abandono de si mesmo, seria outra coisa, não é estar sempre eu aqui,  uma idéia primitiva.