sábado, 30 de agosto de 2014

Minha construção diária


 (continuação)
O budismo veio das vertentes das práticas indianas. Ele tem diferenças fundamentais em relação ao hiduísmo, sobretudo no que se refere à noção de “atman”, em que supostamente existe uma partícula fundamental dentro de mim que é permanente e continua. Deste conceito – atman – surgiu o conceito grego de alma. A linha budista é diferente. Buda ensinou que o que existe é “anatman”. Ou seja, não há uma partícula individual, separada dentro de você, que é você mesmo. O que Buda ensinou foi que nós todos somos um, e não há a noção de que eu estou separado de cada um dos outros. Aliás, este é o engano fundamental.
Diferentemente de setores da filosofia ocidental, em que Descartes começa o seu “discurso do método” dizendo cogito ergo sum – “penso, logo existo” –, para os zen-budistas as coisas ficam mais ou menos assim: - “eu penso, por isso penso que existo!”. Eu imagino que existo, e este meu “eu” é uma construção que eu faço diariamente.

Pensem, pela ótica budista, uma criança pequena sendo ensinada a ser um “eu”. Ela nasce, e quando ela começa balbuciar as primeiras diz simplesmente que “neném quer”. Neném não é um “eu”, mas nós ensinamos esta criança a assumir uma personalidade. – “Você é ‘eu’, é um indivíduo separado! Seu nome é este!”. A criança absorve isso, e assim começamos a criar a dualidade. Aliás, a nossa linguagem tem esta característica, sobretudo quando queremos entender as coisas. É daí que surgem as classificações, que fazemos questão de colocar na nossa “prateleira de conceitos”. – “Isto é isso ou é aquilo? Embaixo, ou encima? Certo ou errado? É direita ou é esquerda?”. Nós queremos entender tudo por classificações, colocando todas as pessoas em escaninhos. Não admira que algumas pessoas perguntem: - “Em que mês você nasceu? Ah, as pessoas que nasceram em tal mês, do dia tal ao dia tal, são isso...”. E aí colocam você naquele escaninho e dizem “você é assim, assim e assim...”. Isso ocorre porque a nossa maneira de conhecer o mundo é através da classificação.

Na verdade, e relativamente falando, nós somos todos sutilmente diferentes, e é daí que também surgem as diferentes correntes religiosas. E a dificuldade de existir um diálogo inter-religioso é exatamente a incapacidade de “abandonarmos os escaninhos”, as classificações que geram separação, distanciamento. Só ao abandonarmos isso é que a partir daí podermos dizer que todos nós temos similaridades, todos somos seres mergulhados em ilusões. E qual é o efeito da ilusão? É provocar sofrimento, a partir do momento em que eu acredito piamente numa única forma de interpretar o mundo, e tendo a qualquer custo encaixar todas as coisas e respostas nesta visão de mundo.
(continua)